É quase como um monitoramento sísmico, em que os sensores tentam identificar movimentos intensos, capazes de reverberar e alterar a realidade que conhecemos. Mas, em vez de atividades tectônicas, aqui se trata de perceber as transformações capazes de influenciar mesas e cozinhas ao redor do mundo. A gastronomia, como tantas outras áreas do conhecimento, é obcecada em tentar antever os movimentos que possam alterar sua rota — mudar a forma como se cozinha. Mais do que buscar antecipar tendências ou perceber como a duração dos ventos pode se transformar, o foco maior é tentar identificar o epicentro: as mãos daqueles cuja nova criação pode transformar a maneira como comemos.
Fazia tempo que os ruídos não se faziam ouvir tão alto desde que o inovador chef Ferran Adrià decidiu trazer a ciência para dentro da cozinha e criar o que se convencionou chamar de gastronomia molecular — ou tecnoemocional, como prefere ele próprio definir sua cozinha de desconstrução, marcada por espumas, esferificações e uma criatividade alçada a um patamar inédito. Na costa da Catalunha, em seu lendário elBulli, Adrià fez soar o alarme de uma nova gastronomia que alterou o eixo dos restaurantes por todo o planeta — algo que não se ouvia desde os tempos da Nouvelle Cuisine francesa, nos idos de 1970.

Recentemente, algumas das ondas mais fortes captadas vêm de uma latitude ainda mais longínqua: a costa dinamarquesa, na idílica — e quase utópica em sua civilidade — capital Copenhague. O pioneiro ali foi René Redzepi, do aclamado Noma, que apresentou ao mundo a Nova Cozinha Nórdica, com seu apreço pelo ingrediente local, uma estética naturalista e uma fascinação pelo universo dos fermentados que influenciou até o que se serve em restaurantes do Tatuapé, em São Paulo, ou de Botafogo, no Rio de Janeiro. Agora, um chef mais jovem, com seu império erguido a apenas alguns metros dali, parece disposto a reivindicar a coroa de novo it-chef da gastronomia mundial.
Loiro, de olhos azuis curiosos e sempre vestido de preto, Rasmus Munk é um millennial nascido em 1991 que fala baixo e parece um adolescente tímido. Ao crescer, sonhou em criar o restaurante mais disruptivo que sua mente pudesse imaginar — e teve a sorte de encontrar um bilionário dinamarquês disposto a bancar o delírio. Ambos se conheceram no antigo restaurante que Munk comandava em Copenhague e que foi o embrião para o projeto que o catapultou na gastronomia mundial. Com investimento superior a 15 milhões de dólares, o Alchemist, inaugurado em sua forma atual em 2019, numa antiga zona portuária da cidade, é hoje uma das reservas mais cobiçadas da alta gastronomia — e um dos mais caros restaurantes que (muito) dinheiro pode pagar: 2,5 mil reais só pela comida, bebidas não incluídas.

Menos de um ano depois da abertura, o espaço conquistou duas estrelas Michelin com um menu-degustação de cerca de quarenta pratos, servido quatro noites por semana a apenas cinquenta comensais, numa experiência que se estende por cinco ou seis horas e atravessa diferentes cenários: de uma entrada performática (a do momento envolve arte e IA, com projeções em que o comensal se vê inserido em momentos marcantes da história) a um bar-lounge luxuoso onde são servidas as sobremesas e o café. A mais impressionante é a sala de jantar principal, um espaço futurista coberto por uma cúpula em forma de planetário, onde imagens em constante mutação dialogam com os pratos servidos. Para criá-las, o restaurante conta com animadores gráficos e um técnico de som/compositor que assina as trilhas originais.

Para explicar o que entende por gastronomia, Munk cunhou o termo “gastronomia holística”, que resume sua tentativa de reunir arte, ciência, ética e prazer à mesa. No Alchemist, o jantar une encantamento e desconforto, beleza e provocação. Em uma noite, o cliente pode ser convidado a chupar uma colher em formato de língua feita de silicone — uma espécie de beijo íntimo — e, minutos depois, ter de tirar uma coxa de frango de dentro de uma gaiola minúscula, denúncia aos maus-tratos nas criações industriais. O lúdico e o político coexistem. “Durante a experiência, levantamos muitos temas: alguns provocadores, outros artísticos, outros apenas divertidos”, diz ele. Ao fim da noite, explica, enquanto alguns convidados discutem galinhas poedeiras em cativeiro, outros falam sobre a música ou sobre uma projeção específica na cúpula que os emocionou. “Muitos trazem interpretações que nem nós havíamos pensado; adoro esse aspecto de nunca saber para onde a conversa vai levar.”

Cada uma das cerca de quarenta etapas do menu é chamada de impressão, e muitas têm um componente de crítica social. Há um chocolate em formato de caixão, que fala sobre o trabalho infantil na cadeia do cacau; um ceviche de águas-vivas, que chama atenção para as espécies invasoras; e o icônico prato 1984, um olho gigante cuja íris abriga uma receita que muda com as estações (de um creme vegetariano a lagosta, por exemplo), quase sempre coberta por caviar, fazendo as vezes da pupila. Enquanto ele é servido, a cúpula projeta uma chuva de olhos, num espetáculo que evoca George Orwell e questiona os limites entre vigilância e exposição nas redes. “Acho importante não dizer às pessoas o que esperamos que elas pensem ou como queremos que reajam. Há uma linha muito tênue entre pregar e despertar consciência, e é essencial para mim que os nossos convidados cheguem às próprias conclusões depois de visitar o Alchemist.”

Para dar vida a essa experiência, Munk conta com uma equipe de mais de trinta cozinheiros e um grupo interdisciplinar que inclui designers e artistas plásticos. A adega, com mais de dez mil garrafas, completa o cenário que desafia as fronteiras do que pode ser um restaurante, um cenário que, em certos momentos, lembra a Coruscant de “Star Wars”. O resultado é uma vivência sensorial que combina espetáculo, precisão e reflexão. Uma espécie de ópera gastronômica. Mas Munk não parece satisfeito em apenas encenar uma experiência extraordinária. Seu desejo é usar a comida para mudar o mundo; ou, pelo menos, para questioná-lo. Foi com esse propósito que ele inaugurou, em 2024, o Spora, um centro de inovação gastronômica instalado a poucos metros do Alchemist. Ali, um time de cientistas, engenheiros, designers e chefs trabalha na criação de novas formas de nutrição e no desenvolvimento de soluções mais sustentáveis para alimentar o planeta. O espaço, de mil metros quadrados, abriga laboratórios de microbiologia, design e som 3D. Entre os projetos mais ambiciosos do centro está o desenvolvimento de proteínas produzidas a partir do ar.
Em parceria com universidades e instituições internacionais (incluindo o MIT, a Fundação Novo Nordisk e a Fundação Gates, de Bill e Melinda Gates), Munk integra um consórcio que busca transformar gás carbônico (CO2) em proteína e, depois, em alimentos nutritivos com potencial para alimentar até um bilhão de pessoas por ano. “Transformar ar em comida soa como ficção científica”, ele admite. “Mas estamos diante de uma crise global de alimentação e de clima e precisamos desesperadamente de soluções radicais para nutrir, de forma sustentável, uma população em constante crescimento. A tecnologia desenvolvida na primeira fase do projeto tem potencial para remodelar completamente a forma como produzimos comida”, conta.

O Spora também atua com projetos sociais. Desde 2020, Munk mantém uma iniciativa que reaproveita alimentos descartados por mercados para preparar refeições destinadas a pessoas em situação de vulnerabilidade em Copenhague. E, em colaboração com um hospital infantil, tem desenvolvido pratos especialmente adaptados para crianças em tratamento de câncer; texturas suaves e sabores acolhedores para pacientes que sofrem com os efeitos agressivos da quimioterapia. Essa combinação de ambição científica e empatia humana define o ethos de Munk — e prepara o terreno para o que talvez seja o projeto mais ousado de sua carreira. Em 2026, o chef dinamarquês será o primeiro cozinheiro da história a servir um jantar no espaço. O evento, criado em parceria com as empresas de viagens espaciais de luxo SpaceVIP e Space Perspective, levará apenas seis convidados a uma cápsula que subirá 30 mil metros acima da Terra, onde o nascer do sol servirá de cenário para o que está sendo anunciado como “a primeira experiência gastronômica estratosférica do mundo”. O preço, cerca de 2,5 milhões de reais por pessoa, reforça o caráter “estratosférico” da experiência.
Munk ainda não decidiu o cardápio, que precisa ser testado sob diversas condições físicas para atender aos requisitos exigidos para chegar ao espaço. Ele diz querer fazer uma interpretação gastronômica dos últimos sessenta anos de exploração espacial e das tecnologias criadas pelas agências espaciais para alimentar astronautas. Por isso, é provável que inclua, entre as sobremesas, uma releitura do sorvete liofilizado desenvolvido nos anos 1960 para a missão Apollo, da Nasa — talvez a mais famosa receita espacial de todos os tempos. “Será uma mistura de toda a inovação e ciência criadas para o espaço, mas também um pouco da realidade que enfrentamos no nosso planeta e dos problemas que precisamos resolver como sociedade”, diz ele.

Com os olhos na Terra, entretanto, o chef vê “cada vez mais conceitos de restaurante e eventos que dão tanta importância à experiência quanto à comida em si”. “Acho que está surgindo uma nova geração muito interessada na gastronomia ‘ativista’. Pelo menos, essa é a impressão que tenho quando converso com jovens chefs em escolas de culinária”, diz. Perguntado pela “Esquire Brasil” se ele acha que o trabalho que tem feito na ilha de Refshaleøen, em Copenhague, tem reverberado pelo mundo, criando abalos na gastronomia global, Munk desconversa. “Acho que cabe a cada profissional, em qualquer área, decidir por si mesmo qual é a sua responsabilidade. Mas, claro, como eu escolhi falar sobre certos temas, é porque acredito que eles são importantes. E espero que isso possa inspirar outros a fazer o mesmo.”