Ele acumula mais de três décadas de profissão, é responsável por quatro mil garrafas e prova 40 vinhos por dia. Manoel Beato, do restaurante italiano Fasano, é considerado um dos maiores sommeliers do Brasil. Nascido em Vera Cruz, interior de São Paulo, ele começou a atuar no ramo nos anos 80, quando fazia faculdade de letras em Assis (SP) e decidiu entrar no universo da gastronomia, trabalhando como garçom.
À Esquire Brasil, Beato passa um pente fino na carreira. Ele relembra o início, fala de onde são seus vinhos preferidos e também dá dicas para quem está começando na profissão.
Confira.
Quando despertou sua vontade de seguir nessa profissão?
Costumo dizer que tudo começa com a literatura. E com um amigo professor de literatura, que gostava de comer e beber, e a gente falava sobre isso. Eu estudava letras na Unesp de Assis, São Paulo, mas eu estava um pouco entediado com a universidade, e comecei a fazer uns bicos de garçom. Então, eu tive sorte de trabalhar em um restaurante incrível em Assis, uma coisa de outro mundo para uma cidade pequena, com profissionais de São Paulo. Percebi que era uma profissão tão infinita quanto a literatura. Isso tudo aconteceu em 1984. Foi assim que eu fui apresentado à profissão de garçom, como eu comecei. Então, eu deixei o curso de letras para fazer um curso de garçom em Águas de São Pedro.
Eu me interessava por restaurantes em geral, sobretudo pelo serviço de sala. E, claro, lia muito sobre comida e bebida, e já despertava esse mundo do vinho, sem dúvida alguma. No começo de 1986, eu vim para São Paulo depois do curso de garçom em Águas de São Pedro pelo Senac, e eu comecei trabalhar como garçom. Mas logo, no mesmo ano, eu já era um garçom que cuidava de uma adega, em um restaurante que não existe mais chamado, Saint Germain. O dono desse restaurante era também dono da importadora Mistral, na época. Então, começou a me despertar um pouco mais essa história do vinho. Fiquei um ano na França em 1988, voltei e comecei profissionalmente como sommelier em 1989.
Como foi o início, suas primeiras experiências como sommelier?
Comecei a trabalhar muito feliz como sommelier, assim como era já feliz trabalhando, em um primeiro momento, como ajudante de garçom e depois garçom. Sempre curti atender e receber pessoas, conversar e fazer todo o ritual “mise-en-scène”. Acho tudo muito lindo. Desde o começo, foi uma alegria poder exercer a profissão, sobretudo em 1989 quando eu provava todas as garrafas que abria, o que não era muito o costume aqui no Brasil.
Você sente um reconhecimento justo na profissão?
Sobre reconhecimento, eu fui sim bem reconhecido. Muita coisa boa voltou para mim. Conheci o mundo através de viagens de vinho e encontrei pessoas incríveis. Eu desempenho meu trabalho num grupo fantástico.
Mas, há muita dificuldade para vários sommeliers em relação ao reconhecimento – muitos acabam sendo um garçom ou maître que é direcionado para ser sommelier, ou até acabam exercendo dupla função. A maior parte dos meus amigos, infelizmente, deixa – ou melhor –, tem que deixar a função de restaurante, sala ou hotel, e partir para uma carreira comercial. A questão salarial é muito difícil e acaba-se trabalhando muito mais e recebendo menos. É uma questão a ser falada.
Qual é o seu vinho preferido?
Com sinceridade, eu não tenho um vinho preferido. Eu acredito – é claro – que a maior diversidade e os vinhos mais incríveis que já tomei são franceses. Vou escolher o país como berço dos meus favoritos e creio que a maioria das pessoas vá concordar. Mas eu realmente não tenho um único vinho preferido. Acredito na diversidade e considero esse aspecto importante. Diferente de outras áreas em que você acaba se inclinando mais para um estilo ou gênero específico, como na música, nos vinhos eu vejo uma tendência a abrir o leque. Quem começa a beber um tipo de vinho, logo parte para outros estilos, uvas, tipo e países.
Você tem ideia de quantos vinhos já tomou?
Quantos vinhos já tomei? Eu provo por volta de 40 vinhos por dia, considerando que atuo como sommelier há mais ou menos 42 anos, precisaria fazer essa conta…
Falta algum que queira tomar e ainda não tomou?
Sim, claro. Uma vez li uma entrevista que dizia que eu já provei tudo o que eu queria. Não é bem assim. Sempre tem alguns vinhos que nos escapam. Mas eu realmente já experimentei quase todos os estilos e safras, até das mais antigas do século XVIII e XIX. Foram inúmeras!
Quase todos os rótulos das maiores vedetes do mundo dos vinhos eu consegui provar. Já sou muito feliz e realizado, mas estou sempre em busca de experiências novas, então sempre terá o que provar. Ainda mais pensando que todos os anos nasce um vinho diferente. Eu vivo provando.
Qual é a pior experiência/perrengue que passou na profissão?
Sinceramente, tive poucos perrengues e experiências ruins na área. O que me deixa extremamente chateado – principalmente no começo da carreira, porque ainda não sabemos lidar bem com isso – são as ofensas. Muitas vezes, por erros ou atrasos nossos, as pessoas têm reações agressivas. É muito raro, confesso, mas já me aconteceu. Já cheguei a voltar para casa chorando por conta disso, mas já faz muito tempo.
Como você descreve trabalhar no Fasano?
Como já mencionei, eu tenho muita sorte de trabalhar no Fasano. O restaurante e o Grupo me dão muita liberdade em minhas escolhas, não apenas em relação aos vinhos, mas para escolher como trabalhar, quais apetrechos usar, na melhor forma de servir. Também sou grato por poder passar minha experiência para os outros, isso me engrandece muito. Posso dizer que tenho ajudado a formar diversos sommeliers que passaram por lá e hoje estão em vários lugares importantes. Me orgulho demais disso e devo ao Fasano, por ser um restaurante que preza por um serviço impecável de maneira geral.
O que você falaria para uma pessoa que quer começar na profissão de sommelier?
Bom, para um profissional que esteja começando, eu queria fazer a definição de sommelier. Sommelier é o profissional que trabalha com serviço (vamos sublinhar a palavra serviço) de bebidas de um estabelecimento. Então, primeiro que não é só o vinho. As perguntas vêm sempre em torno do vinho, porque é com ele que a gente mais trabalha numa sala de restaurante – onde geralmente trabalha o sommelier.
Mas, também existem sommeliers de lojas, desde que ele trabalhe com o serviço de bebidas. Então, tem que ser abrangente, estudar muito sobre todo tipo de bebida e, claro, compreendendo também a comida, por conta da harmonização.
É necessário ter muita paciência, sem dúvida nenhuma, porque é um trabalho que precisamos nos dedicar e estudar muito. A parte teórica também é fundamental. Muitos acham que é apenas beber, mas não. Muito da parte teórica começa em ver mapas de regiões e estudar uvas. Além disso, servir como um garçom e saber se expressar é muito importante, ser generoso, porque tem muito sommelier com nariz empinado, mas é muito importante saber ouvir, ser um bom ouvinte e olhar para o outro.
Qual é a diferença entre enólogo e sommelier?
O enólogo é diferente do sommelier, que, por sua vez, é diferente do enófilo. Esse último pode ser também um professor de vinhos, mas não é sommelier, que essencialmente trabalha com serviço. Existem alguns enófilos e mestres que são estudiosos, autodidatas ou com cursos, mas que não são enólogos – pois estes precisam necessariamente cursar uma faculdade de enologia. O enólogo é quem faz o vinho e outras bebidas no geral, ele tem uma formação bastante técnica e prática, com curso superior de enologia.
Como é sua rotina? O que costuma fazer no dia a dia?
Minha rotina de trabalho, como sempre, consiste em ir ao Fasano, onde já estou há 33anos, e trabalho todas as noites exceto uma folga por semana. No geral, trabalho à noite e, aos domingos, também durante o dia.
A rotina inclui muita prova de vinhos com os dois sommeliers que trabalham comigo, Fabio e Jonas. Nós decidimos vinhos que entram na carta e conversamos sobre vinhos, além de termos todo um trabalho de escritório, no qual não atuo muito, mas tem os meninos mais jovens que vão saber mais de Excel do que eu. Como diz Jun Sakamoto: para ser um bom sushiman precisa saber de Excel (risos). É muito importante, claro, o controle de uma adega e das bebidas em geral.
Temos que provar e estudar muito, existem sempre novidades no mercado. As viagens, claro, são fundamentais para o sommelier. Costumo dizer que um dia em uma vinícola é como um ano de aprendizado.