“Vi muitos homens, amigos e conhecidos, caminhando direto para o abismo.” Assim o pastor guatemalteco Chepe Putzu explica o que o motivou a criar, em 2015, o Legendários, que se autodefine como “um movimento que busca a transformação de homens, famílias e comunidades por meio de experiências que levam os homens a encontrar a melhor versão de si mesmos e seu novo potencial”. A ideia anunciada é devolver “o herói de cada família”.
Na prática, isso implica participar de uma (ou de muitas) TOP, sigla para Track Outdoor Potencial (potencial de trilha ao ar livre), expedições temáticas que reúnem centenas de homens rumo a montanhas e espaços inóspitos dos quais, teoricamente, eles voltam transformados. Na bagagem, além de utensílios básicos para a sobrevivência ao ar livre, Bíblias. Tudo é guiado por mensagens cristãs, sendo que Jesus Cristo foi intitulado o primeiro legendário.
“Nós acreditamos que Jesus é o modelo perfeito de masculinidade: forte, corajoso, cheio de amor, justiça e compaixão. Por isso, nossas expedições não celebram estereótipos, celebram transformação”, define Putzu. “É importante deixar claro que no Legendários exaltamos uma masculinidade saudável. Não buscamos homens dominadores, mas homens íntegros, responsáveis, protetores, humildes, quebrantados diante de Jesus, que sirvam, que chorem quando for tempo de chorar e que liderem quando for tempo de agir. Infelizmente, o conceito de masculinidade foi deturpado na linha do tempo.”
O movimento, que já tem 122 mil adeptos no mundo, em mais de 140 cidades e 20 países, cresceu no Brasil depois que a influenciadora Viih Tube compartilhou com seus mais de 33 milhões de seguidores a vivência de Eliezer, seu marido, junto ao grupo. Ela celebrou a experiência e o impacto positivo que ela teve na vida do ex-BBB, afirmando que ele voltou das montanhas transformado. Outros famosos e quase-famosos aderiram às expedições, como Thiago Nigro, Neymar pai, Pablo Marçal e Deive Leonardo. Diversos esportistas também se tornaram adeptos, como o ex-jogador de futebol Jorginho e o ex-nadador Thiago Pereira.
Afinal, o que são as tão comentadas TOPs? “As expedições não se resumem a desafios físicos. Elas representam uma desconexão total do conforto e da rotina para encarar a verdade da alma. São processos espirituais profundos, que restauram o coração do homem e favorecem o encontro com o legendário 001, que é Jesus”, explica Putzu.
As TOPs receberam muitas críticas por causa dos valores cobrados. Na internet, circulava que os gastos poderiam ultrapassar R$ 80 mil – o que o fundador nega. “Isso não é verdade. Nunca tivemos nenhuma TOP em nenhum lugar do mundo com valores como esse. No Brasil, nossas TOPs custam de R$1.600 a R$ 1.800. As variações [de preço] acontecem conforme o local e até o país onde a expedição é realizada. O custo cobre a logística: alimentação, transporte, segurança, estrutura. Há bolsas e auxílios disponíveis. Ninguém fica de fora por questões financeiras. O que acontece na montanha não tem preço.”
Uma das questões mais importantes no Legendários, segundo os próprios, é que os homens se tornem pessoas melhores para suas famílias e especialmente para suas mulheres. O tema traição é bastante discutido e virou meme nas redes sociais. Mas, afinal, como se dá essa virada de chave? O que buscam os homens nas montanhas que não conseguem encontrar na vida cotidiana?
“Eles buscam propósito, identidade, direção. Muitos vivem no automático, feridos, desconectados de suas famílias. A montanha os confronta, limpa e equipa para que voltem diferentes. Se querem ser bons pais e maridos, primeiro precisam ser curados e reencontrar sua origem”, afirma Putzu, que foi pastor de crianças e jovens na Guatemala.
Jorginho, 60 anos, ex-jogador do Flamengo e que participou da conquista da Copa de 1994, foi a uma das expedições em maio, no Rio de Janeiro. “Tem muita gente que ama Deus e quer realmente ter uma família estruturada, ser um bom pai, um bom marido, mas não faz por onde. Eu sou homem. E tenho naturalmente atração pelo sexo oposto. Só que sou casado. Tenho 37 anos de casado e 43 anos com a minha esposa. Eu não quero jogar tudo fora por causa de uma aventura”, conta.
Só que tem muita gente que faz isso, diz ele. “No Legendários, é trabalhada muito fortemente essa questão do casamento, da honra que a gente deve dar à nossa mulher, à nossa família, aos nossos filhos. Porque a gente sabe o que está acontecendo hoje na sociedade. As pessoas estão trocando de mulher – ou de homem – como se troca de roupa. Ah, cansou, deixa para lá, vamos partir para a próxima. A gente volta àquela questão de ser o líder da sua casa, o exemplo, o sacerdote do seu lar.”
Para Jorginho, que diz ter se convertido aos 21 anos, a fidelidade – especialmente no que se refere ao sexo – é um desafio para o homem moderno. “Hoje, qualquer homem na internet tem acesso à pornografia o tempo todo. Principalmente na questão sexual, o homem tem muita dificuldade. E posso dizer de todo o meu coração que só consegui realmente isso firmando o meu compromisso com Deus, senão não conseguiria. Era noivo da Cristina, que hoje é minha esposa, e traía ela, saía com outras mulheres. Até que falei: ‘Deus, muda a minha forma [de agir], eu não quero que aconteça comigo o que aconteceu com meu pai, que abandonava a minha mãe para poder ficar com mulher fora. Eu não quero isso, eu quero ser fiel à minha esposa”, lembra.
“Tenho certeza de que os homens verdadeiramente héteros, homens mesmo, passam dificuldade nessa área. São montanhas diárias pelas quais precisamos passar”, conta ele. O movimento, obviamente conservador, é voltado a relacionamentos heterossexuais e famílias tradicionais.
“Pode ser até que tenha [gays], mas abertamente assim… Eu não sei, sinceramente. Não é fechado para ninguém, é para todos os homens. E eu tenho certeza de que Deus vai tratar a necessidade de cada pessoa, independente da escolha que ela tenha feito”, afirma Jorginho. Questionado sobre se a comunidade LGBTQIAP+ é bem-vinda, Putzu optou por não responder.
O ex-nadador Thiago Pereira conta que se viu transformado após participar de uma TOP. “A parte espiritual é a mais importante, porque engloba o mental e físico. A gente vê um ajudando o outro, como uma família. Na montanha, às vezes é difícil sozinho, mas juntos funciona – seja na hora da comida, de montar a barraca. Em grupo você se torna mais forte, mais confiante. Voltei com um pensamento diferente.”
Obviamente conectado à ideologia do Legendários é o livro A Rota do Caçador, escrito pelo fundador do movimento. “A figura do caçador simboliza o homem que foi desenhado por Deus para conquistar, proteger e liderar com amor. É o homem que recupera seu instinto de aventura, sua fome por propósito e seu compromisso com a família. Não se trata de caçar galinhas, mas, sim, mamutes. Coisas grandes, significativas, eternas.”
O papel das mulheres diante do Legendários é basicamente o que a elas já é reservado dentro de uma família tradicional e conservadora: cuidar, apoiar, resolver tarefas práticas e, acima de tudo, criar o ambiente perfeito para que o marido, o provedor, consiga evoluir.
“Embora o Legendários seja focado nos homens, reconhecemos que as mulheres têm sido pilares espirituais por muitos anos. Acreditamos que, quando o homem muda, a mulher colhe os frutos. A partir dessa perspectiva, não impomos papéis. Convidamos o homem a amar, honrar e unir, e isso começa dentro de casa e se reflete na sociedade. O resultado sempre beneficia mães, esposas e filhas”, afirma Putzu.
É comum ver nos vídeos dos Legendários homens reunidos repetindo juntos “AHU!”, como uma espécie de grito de guerra. Não se trata apenas de uma manifestação de testosterona exacerbada. AHU vem de amar, honrar e unir.
Atento ao sucesso que o Legendários atingiu no Brasil, o movimento se prepara para abraçar, agora, as mulheres. “Elas já têm espaço dentro do grupo. As esposas dos homens que sobem a montanha participam de reuniões próprias, nas quais são cuidadas e acompanhadas por outras mulheres. Isso nos levou a planejar um projeto voltado às mulheres, com sua própria identidade, que lançaremos em breve. Estamos desenvolvendo uma proposta que mantenha o DNA transformador do movimento Legendários, embora o foco seja diferente. Queremos oferecer um espaço seguro, autêntico e profundo que as impulsione a viver com convicção, identidade e liberdade”, informa o fundador do movimento.
Florianópolis, berço conservador do Brasil, não por acaso foi a primeira cidade a abraçar o Legendários por aqui. O país, hoje, é o que mais tem adeptos no mundo, com mais de 41 mil legendários, segundo a organização. “O Brasil tem uma fome espiritual muito grande. É um país onde o homem, quando encontra o espaço certo, não tem vergonha de chorar nem de buscar a Deus. A expansão aconteceu por meio do testemunho. O crescimento foi orgânico, de coração em coração”, diz Putzu.
Ele afirma que não vive do dinheiro arrecadado com as expedições. “Sempre tive negócios e trabalhei em outros lugares. Somos uma organização formal, com uma base voluntária que torna possível o que acontece na montanha.” O grupo, oficialmente, é também definido como não religioso e apartidário.
E como é comum acontecer em reuniões estritamente masculinas, existe entre os homens do Legendários um pacto de silêncio sobre as TOPs. O que acontece na montanha fica na montanha. “Acreditamos que há momentos em que os homens precisam falar, curar e enfrentar suas sombras entre homens.”
O fundador conclui: “O silêncio é parte da nossa essência. Pedimos aos homens que guardem para si o que outros compartilharam, por respeito. Muitos abrem o coração pela primeira vez, falam de feridas, fracassos e correntes que os marcaram por anos. A honra de manter o silêncio cria um ambiente seguro, onde cada homem pode ser vulnerável sem medo de ser exposto. Esse respeito é o que permite a cura.”
O antropólogo Michel Alcoforado afirma que os homens se inventam enquanto homens com outros homens, em espaços de homens. “Não à toa essa é a lógica da confraria. Ela existe em todos os processos de sociabilidade de homens desde sempre. Ela está no puteiro, ela está no jogo de pôquer, ela está no futebol. A gestão do segredo é um ponto fundamental para manter a ideia de masculinidade”, define.
O Legendários é um movimento muito representativo da atualidade, classifica Alcoforado. “O discurso é de gerar uma transformação nesses homens a ponto de eles serem pessoas melhores. Só que estamos falando muito claramente de um tipo de transformação que reforça a masculinidade responsável por boa parte dos problemas que temos vivido hoje.”
Para Alcoforado, não é acaso o movimento ter feito tanto sucesso no Brasil, pois ele se conecta a uma masculinidade latina, pautada em alguns princípios estruturantes. “Cabe aos homens o conforto, no sentido de receber apoio de suas mulheres; também cabe a eles suprir, prover, cuidar de suas famílias financeira, sentimental e espiritualmente.” E um item decisivo é a ideia de competitividade e força, a virilidade, a potência masculina – não por acaso as atividades físicas (e as expedições montanha acima) são centrais nesse movimento.
“Para mim, nada mais é do que uma resposta ao movimento recente de desconstrução da masculinidade. É a mesma coisa do Red Pill [movimento misógino] e tão perigoso quanto. Porque ele não abre brecha para outros tipos de masculinidade. Reforça papéis de gênero que foram inventados pela sociedade, colocam as mulheres numa posição de dominadas, e o homem como dominador. Estamos construindo aqui o papel desses homens enquanto superiores. Eles sobem montanhas, eles cuidam dos filhos, eles levam o dinheiro para casa, eles são machos do jeito que os machos não são mais.”
Para Alcoforado, no entanto, a religiosidade misturada ao trabalho e ao sucesso financeiro faz com que o movimento seja menos criticado. “Ele é um bom pai, um bom empresário, um bom marido, é espiritualizado e ainda sobe montanha. Vai criticar como?”
Outro aspecto importante, segundo Alcoforado, é o grande número de homens com mais de 40 anos que fazem parte do Legendários. “Esse é o momento da vida em que a masculinidade começa a ser fortemente afetada. Então, esses caras já compraram moto, já compraram carro, já começaram a praticar triathlon e viram que nada disso os definiu. A luta feminista desestabilizou o papel desses homens, que já estavam completamente perdidos. É a masculinidade do ponto de vista individual sendo colocada à prova e, agora, também do ponto de vista social.”
A assessoria de imprensa do Legendários foi procurada para comentar as colocações de Alcoforado, mas optou por não responder.