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Mauro Cezar Pereira: conversamos com a voz mais polêmica do jornalismo brasileiro

Mauro Cezar Pereira estava resfriado em pleno outono brasileiro. Uma doença tão comum que a maioria das pessoas considera banal. Mas, quando acontece com alguém que trabalha com a voz, a rotina sai do controle. “Estou com a garganta mal, quase sem voz, trabalhando no limite”, escreveu, em resposta à quarta tentativa de uma entrevista. Vinte dias depois do primeiro contato, enfim, Mauro mandou outra mensagem: “Pode ser agora”.

Mauro Cezar tornou-se uma das vozes esportivas brasileiras mais conhecidas e polêmicas. Em condições normais de saúde, fala dia e noite na TV, no rádio, em podcast e sobretudo em seu canal no YouTube. Ainda escreve para portais na internet, além de postar e interagir nas redes sociais com frequência. E se fala e escreve tanto, é porque há quem o ouça e o leia, e isso gera valor, como gosta de rotular a turma nativa digital. O multicomentarista fala até sobre assuntos sobre os quais preferiria se calar – como o papel de Neymar no futebol contemporâneo. “Hoje é um jogador imaginário: as pessoas imaginam que ele vai fazer mil coisas que ele não consegue mais fazer, e se vai conseguir fazer de novo, ninguém sabe. E já faz tempo isso aí. Acho que se fala muito mais dele do que se deveria. É um jogador talentoso que não virou nada de mais. Não tem muito o que falar dele, não”, avalia.

O niteroiense de 61 anos escolheu fazer jornalismo esportivo inspirado pela turma mais falante, a dos radialistas. Quando criança, não tinha especial talento com a bola nos pés (era melhor no futebol de botão), mas ouvia atento às palavras de Doalcey Camargo – para ele, o maior narrador de todos –, Washington Rodrigues, José Carlos Araújo, Kleber Leite, Waldir Amaral, Jorge Curi e João Saldanha. Aos 9 anos, já tinha vontade de ser repórter de campo. Mas passou primeiro por uma revista especializada em navegação e marinha mercante antes de aportar em sua praia. “Entrei como redator. Era estagiário-redator, é mole? Escrevia os textos que os narradores liam.” Chegou a trabalhar simultaneamente em duas rádios, ainda nos anos 1980, e depois foi para o jornalismo impresso.

Com “vinte e poucos anos”, tornou-se editor do “Jornal dos Sports”. Peregrinou por diversas redações cariocas até ser convidado pela revista “Placar” a pegar a ponte aérea. Mudou-se para São Paulo e nunca mais voltou. Suas primeiras aparições como comentarista eram esporádicas, no portal Terra e na rádio CBN. Virou tarefa diária por um convite de José Trajano, a partir da indicação de Paulo Cesar Vasconcellos. Vestiu a camisa da ESPN entre 2004 e 2020. Falou muito e, claro, também colecionou discussões acaloradas com colegas de bancada.

Mauro Cezar não faz questão de agradar nem tolera desaforo. Nos últimos anos, como a maioria dos profissionais da área, é obrigado a lidar com as redes sociais, para o bem ou para o mal. “Num primeiro momento, achei bem complexo, pela agressividade das pessoas, achando que têm direito de ameaçar, este tipo de coisa. Depois você aprende a lidar com isso e passa a filtrar também”, diz. Por filtrar leia-se bloquear. Atualmente, um número entre 70 e 80 mil de contas já foram excluídas pelo comentarista. “Eu tenho 3,7 milhões de seguidores, é um percentual até pequeno”, avalia (os bloqueados correspondem a cerca de 2%). “Você não é obrigado a atender ligação de telemarketing. Também não quero ter contato com uma pessoa que chega ali pra ofender, pra xingar. Bloqueia, pronto, acabou. Ele fala sozinho e um abraço.”

Boa parte dos xingamentos se deve ao tema prioritário de Mauro, o Flamengo. Ele garante que isso se deve a uma questão mercadológica, e não por mero clubismo, como pode parecer. “Eu preciso da audiência, meu canal é parte do meu trabalho, não é um hobby. E como a frequência maior [de público] é de rubro-negros, eu falo [sobre o Flamengo]. Se a frequência fosse de outro time, falaria. Procuro moldar isso, da mesma forma que a Globo não mostra os jogos do América ou da Portuguesa, mostra os jogos dos times grandes que interessam a ela”, diz. Anos atrás, quando o público descobriu que seu coração batia mais forte pelo clube da Gávea, Mauro preferiu assumir. “Não falava porque isso é irrelevante dentro do meu trabalho. Se eu fizesse comentário como torcedor, não seria xingado por um monte de torcedor do time que eu torço. Meu compromisso é com o meu trabalho, não é com meu time. Meu time é apenas o meu time. Ele vence, fico feliz, é legal, lógico que eu gosto do meu time, mas o compromisso é com meu trabalho. O importante é ter a capacidade de separar as coisas. Eu acho que eu tenho essa capacidade, tô nessa estrada há décadas e acho que eu separo muito bem, mas sempre vai ter um babaca pra falar que eu sou clubista, e só vai recortar, por exemplo, o momento em que eu falar que o Flamengo foi prejudicado pela arbitragem. E não vai reparar quando eu digo que o gol tava impedido, ou que o pênalti contra não foi dado. Isso é coisa de gente tosca, mas eles estão soltos por aí”, elabora.

Sua outra paixão clubística, o Racing, Mauro nunca fez questão de esconder. Admirador do futebol argentino (assim como do inglês), ficou encantado pela forma com que a hinchada do time de Avellaneda apoiou o clube na final da Supercopa de 1992, contra o Cruzeiro. No primeiro jogo, 4 a 0 para os mineiros; na volta, o time venceu por 1 a 0, o que foi insuficiente para reverter o quadro. Mesmo diante desse cenário, a torcida apoiou até o final. Mauro apaixonou-se. “Hoje me considero um torcedor. Sempre que posso vou lá acompanhar, faz parte da minha vida também”, diz. No El Cilindro, como em outros estádios argentinos, ainda há espaço para o que Mauro considera parte fundamental no futebol: a ambiência e a festa das torcidas. Nada contra o formato moderno das arenas, o problema é a tendência a restrições. “Em São Paulo, não pode bandeira com mastro. Em jogo da Libertadores, não pode bandeira, não pode papel picado, não pode não sei o quê, não pode sinalizador, que os caras confundem aquele artefato naval com um pisca-pisca que só tem efeito visual. Então nada pode, e o espetáculo quem faz é a torcida. Hoje proíbem a festa. Tá cada vez mais chato, parecendo um teatro. Isso não é futebol. Os caras querem acabar com a essência do futebol, que é a torcida. Se não houvesse os torcedores, seriam 22 caras jogando bola e ninguém assistindo.”

Há outras coisas que Mauro também não curte. Por exemplo, ex-jogadores ocupando os assentos de comentaristas nas emissoras de TV. “Os executivos de televisão têm um fetiche por ex-jogador”, analisa. “Mas eu paro pra ouvir pouquíssimos, a maioria pouco acrescenta”. Entre os que ele considera interessantes está Vampeta, seu atual colega de bancada na TV Cultura, e a quem considera estudioso (o próprio Mauro diz assistir de 8 a 10 jogos por semana, além dos fragmentos dos demais, fora o tempo que passa analisando estatísticas, declarações pós-jogo e apurando informações diretamente com suas fontes). “Muitos [ex-jogadores] estão ali pela visibilidade, para não serem esquecidos, ou pra arrumar vaga num clube – vai ser técnico, ou supervisor, isso também acontece bastante.” Mauro Cezar também aponta o corporativismo como um defeito característico da classe: “implicam com técnicos estrangeiros porque são amigos dos brasileiros”. É fã do português Jorge Jesus, a quem defendeu no comando da seleção brasileira antes da escolha do italiano Carlo Ancelotti.

Se não faz restrições a estrangeiros – sejam eles técnicos ou jogadores (atualmente, são cerca de 150 nos clubes da série A) –, Mauro não é tão simpático aos árbitros. “Arbitragem é um assunto muito superestimado. Se [as TVs] gostam tanto de arbitragem, por que não fazem a chamada assim: “Domingo, Corinthians x Palmeiras. Arbitragem: Anderson Daronco”, aí enche a tela com a imagem dele. Ninguém quer ver o Anderson Daronco, ou o Wilton Pereira Sampaio. Nada contra eles, as pessoas. Mas eles são árbitros, são coadjuvantes, estão ali só pra apitar o jogo. Mas foram transformados num assunto mais importante do que deveriam ser”. Mesmo depois de aposentados. “Acho ruim quando ex-árbitros têm a palavra final [na mídia sobre uma marcação em campo]. O comentarista do jogo não poder dar opinião sobre um lance polêmico é o fim da picada. Eles erram a carreira inteira, aí vão pro microfone e são os donos da razão?”, diz. Seu julgamento inclui ainda o VAR, “uma boa ideia mal utilizada, especialmente no Brasil: muito intervencionista, se mete demais no jogo.”

Outra sigla incorporada recentemente ao universo do futebol – SAF – também sofre restrições de Mauro. “SAF no Brasil é uma grande ilusão. O cara compra um clube aqui e acha que vai virar o Chelsea do Abramovich, ignora que na Europa tem um monte de clubes com dono em dificuldades. A SAF é uma empresa, que pode ser bem gerida ou mal gerida. Acho até pueril essa visão. ‘Ah, virei SAF, agora sou fortão, vou ganhar tudo’. Não é assim”. Na avalição de Mauro, a falta de fairplay financeiro – comum tanto a SAFs como a clubes tradicionais – também tem a capacidade de estragar a isonomia do jogo. “O mercado fica totalmente desregulado. Esportivamente, convenhamos, é no mínimo questionável.”

Em relação a apostas, regulamentação também é a palavra que ele gosta de usar. Mauro considera que devem ser encaradas como parte do negócio. “Isso chegou ao Brasil nos últimos anos, mas na Inglaterra tem casa de aposta em cada esquina, nos Estados Unidos se aposta até em corrida de cachorro. Desde que tenha uma regulamentação, faz parte. As pessoas não vão parar de apostar. Se proibirem no Brasil, vão continuar apostando lá fora. Os principais times e campeonatos do mundo já foram patrocinados por casas de aposta”, lembra. Seu canal no Youtube também é patrocinado por uma bet, entre outras empresas. Na transmissão ao vivo depois do jogo Flamengo 6 x 0 Juventude, no dia 16 de abril (e que se estendeu até 2 horas da madrugada), foi questionado por diversos internautas a esse respeito. No dia anterior, Bruno Henrique havia sido indiciado pela Polícia Federal pela suposta participação num esquema de fraude às apostas (ele levou cartão no jogo contra o Santos, pelo Brasileirão de 2023, o que teria beneficiado seu irmão). O jogador virou réu nesse processo ainda em andamento. Nas respostas aos seguidores, Mauro alegou desconhecer estudos que comprovassem os malefícios das apostas à sociedade. Segundo reportagem de setembro passado do mesmo portal UOL no qual Mauro escreve uma coluna, o “Brasil tem epidemia de vício em bets”, o que já se configuraria como questão de saúde pública. De acordo com o Banco Central, em abril de 2025, apostadores gastam até R$ 30 bilhões por mês no país – mais que o dobro do custo, por exemplo, do Bolsa Família. Um estudo da Sociedade Brasileira de Varejo e Consumo (SBVC) de setembro de 2024 mostrou que 63% daqueles que apostam no país tiveram parte da renda comprometida com as bets. Outros 19% pararam de fazer compras no mercado, e 11% não gastaram com saúde e medicamentos. A um dos espectadores que interagiram naquela noite, Mauro respondeu exaltado: “Todo mundo pode [ser patrocinado por bet] e eu não posso? Você já reclamou com a Globo, a ESPN? O problema é o Mauro? Você espera que eu seja o arauto da moralidade? Os anunciantes são fundamentais. Sabe que horas eu acordei hoje? Eu preciso dos patrocinadores, são eles que me dão independência. Vou recusar porque eu sou bonitão?” Naquela mesma noite, o técnico Filipe Luís, do Flamengo, deu uma entrevista (que Mauro classificou como “corajosa”) em que disse: “Eu já recebi várias ofertas pra fazer propaganda de casas de apostas. Não faço porque eu sei o dano para as pessoas que apostam. O vício que é. É uma droga, infelizmente. Daqui a 20 anos, a gente vai estar olhando e vai falar ‘caramba, todos os times, todos os lugares tinham anunciado casas de apostas’. Mas o dano que está machucando, está fazendo em tantas pessoas, a gente não tem a real noção ainda do que está acontecendo.” Mauro faz uma ressalva em relação à participação dos atores do espetáculo entre os apostadores. “O jogador, o técnico, o árbitro, não podem participar. Eles fazem o jogo. Quando se envolvem, é pouco inteligente, pra dizer o mínimo”. No dia seguinte a esta entrevista, reforçou em sua coluna o direito de defesa de Bruno Henrique, mas também considerou que, caso se demonstre seu envolvimento, “terá sido uma tolice gigantesca, uma tolice de outro patamar”.

Outros temas quentes, como política, Mauro Cezar tem preferido evitar, mesmo em conversas com pessoas que se posicionam à esquerda, como é seu caso. “Evito por autopreservação. A ignorância que impera por aí é insuportável. E não tô falando só de pessoas de direita, não. Tem pessoas de esquerda com quem não dá pra falar, porque são radicais, têm uma visão muito maniqueísta das coisas, isso me cansa um pouco. Nessa altura da vida não tenho mais saco pra isso não, bicho.” Podendo evitar, foge até das resenhas esportivas. “Não vejo resenha, não vejo debate. Eu vejo jogo de futebol. Já participo de debate a semana inteira, não é o que me atrai. E isso não é de hoje, já vem de muitos anos.” Tem horas que não é só a voz: o próprio ouvido cansa.