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A namorada de Cormac McCarthy

No início dos anos 1990, minha esposa e eu costumávamos fazer uma viagem anual pelo sudoeste americano, uma de nossas partes favoritas dos Estados Unidos e, de fato, do mundo. Nós nos hospedávamos no hotel Biltmore em Phoenix, Arizona (onde, naqueles dias, um quarto podia custar mais de US$ 300 por noite). Na manhã seguinte, dirigíamos por Flagstaff até Second Mesa e ficávamos no Centro Cultural Hopi, que tinha quartos para alugar por, se bem me lembro, US$ 7. América, Terra de Contrastes.

Um ano, antes de partirmos, liguei para nosso amigo Cormac McCarthy e sugeri que nos encontrássemos quando estivéssemos lá. Claro, ele disse, de maneira educada e suave, seria um prazer. Ele estava morando em El Paso na época, o que era um pouco ao sul demais para nosso alcance. Bem, então, ele disse, viria até Santa Fé, um dos lugares de parada em nossa rota. Sim, de fato, eu disse, e poderíamos almoçar em nosso hotel, La Fonda, que faz as melhores margaritas de todo o sudoeste. Maravilhoso.

“E eu vou levar minha namorada”, disse Cormac, enquanto desligava.

Ainda faltavam algumas semanas para viajarmos e, na maioria das noites durante o jantar, nossa conversa inevitavelmente voltava ao enigma da “namorada de Cormac”: quem, e o que, ela seria?

Cormac estava na casa dos sessenta na época, e ainda era um sujeito bonito, embora nodoso como o toco de uma árvore atingida por um raio. Já havíamos decidido que a única consorte plausível para ele seria uma loira d’un certain âge, alguém que vive intensamente, bebe intensamente, xinga intensamente. Para essa pessoa projetada, demos o nome de Lauren, como em Lauren Bacall.

Chegamos a Phoenix no início do outono. Tivemos nossa noite ritual de sibarita no Biltmore, depois algum tempo de sonho entre os Hopis. Demos nossa primeira e, como se revelou, última olhada no Grand Canyon. Ficamos na borda daquele vasto buraco no chão, balançamos a cabeça — “Esse é o Grand Canyon, com certeza”, minha esposa disse — e então fomos para o bar mais próximo para passar uma tarde feliz discutindo, bem, a Namorada de Cormac.

La Fonda estava lotada naquele fim de semana. Minha esposa e eu tomamos uma margarita revigorante no bar e então endireitamos os ombros e nos dirigimos para a sala de jantar. Cormac e Lauren também estavam hospedados no hotel, e agora um garçom veio até nossa mesa para nos dizer que o Sr. McCarthy tinha acabado de telefonar para dizer que estaria conosco em breve.

“Estou nervosa”, minha esposa disse. “Você está? Não é ridículo?”

Depois de alguns minutos, Cormac apareceu. Pode surpreender seus leitores saber que ele não era um homem muito alto — de peito largo e ombros largos, mas não alto. Quando ele entrou pela porta, assumimos que a jovem ao seu lado devia ser uma filha de quem não tínhamos ouvido falar.

“Esta”, Cormac disse, com um sorriso tímido que eu nunca pensei ver naquele rosto cravado de Monte Rushmore, “é minha namorada, Jennifer.”

Ela não era Lauren Bacall; ela não era nada como Lauren Bacall. Ela tinha 26 anos ou algo assim — pelo menos 1,78m, pálida como porcelana, esguia com cabelo curto e escuro — e bonita de uma maneira curiosamente elusiva. Ela também era inteligente, engraçada e não estava nem um pouco impressionada com seu — a palavra não pode ser evitada — namorado.

Nós conhecemos Cormac alguns anos antes, em Dublin. Quando “Meridiano de Sangue” apareceu em meados dos anos 1980, eu fiz uma resenha entusiástica — é um romance extraordinário — que ele deve ter visto, embora ele alegasse não ler resenhas. Um dia, ele me telefonou do nada para se apresentar e dizer que estava na cidade e perguntar se eu gostaria de nos encontrarmos. Lembro-me de me perguntar como ele conseguiu meu número de telefone. Com Cormac, havia muitas incógnitas.

Na noite seguinte, cheguei cedo ao Hotel Shelbourne e fiquei no bar observando a porta. Suponho que esperava uma figura à la John Wayne: grande, esguia e vagamente perigosa. O homem que entrou era de estatura média, robusto, vestindo um sobretudo de tweed e um chapéu de tweed combinando. Ele poderia ter sido um corretor de Wall Street vindo à Irlanda para uma pescaria. E ele era tímido. Quem diria? Ele pediu uma Coca-Cola. Não, ele não bebia.

“Costumava beber”, ele disse, com um sorriso irônico. “Sim, eu costumava beber.”

Ele estava no meio de sua Coca quando minha esposa se juntou a nós, e instantaneamente ele se transformou de pescador em cavalheiro sulista, com um sorriso preguiçoso e palavras calorosas e íntimas.

“Oh, não seja estúpido”, minha esposa disse mais tarde. “Você, de todas as pessoas, deveria saber que escritores nunca se parecem com seu trabalho.”

De volta a Santa Fé, foi um almoço alegre. Cormac estava tocantemente atento a sua Jennifer — e ela era muito dele — e mais relaxado do que eu jamais poderia imaginar que ele pudesse ser. Por sua vez, ela o provocava de maneira afetuosa que só um amante pode fazer. A vida nunca deixa de surpreender.

Ao sairmos da sala de jantar, minha esposa sussurrou para mim pelo canto da boca: “Ele está acabado.” Perguntei o que ela queria dizer. “Olhe para ele, pelo amor de Deus, ele está feliz!”

Alguns anos depois, Cormac se casou com sua Jennifer e eles tiveram um filho. Eu perdi o contato, como costuma acontecer nessas coisas. Presumi que ele continuou sendo feliz. Os livros que ele publicou por volta daquela época, como “Todos os Belos Cavalos”, por exemplo, me pareceram apontar uma decadência. Comecei a pensar que minha esposa estava certa, depois do almoço naquele dia em La Fonda.

Então, em 2006, veio “A Estrada”, um de seus romances mais sombrios e selvagens. Liguei para Sonny Mehta, seu editor e o meu na Knopf, e disse a ele o quanto estava surpreso e impressionado com o novo livro, que considerei um retorno triunfante à forma.

“O que aconteceu?”, perguntei.

“Simples”, Sonny disse. “O casamento acabou.”

 

Cormac McCarthy (1933–2023) nasceu em Providence, Rhode Island. É autor de obras fundamentais da literatura norte-americana, como “Meridiano de sangue”, “Onde os velhos não têm vez” e “A estrada”, vencedor do Pulitzer. Em setembro, será publicado em português “Suttree”, romance semiautobiográfico de McCarthy. “Suttree” acompanha quatro anos na vida de um homem que abandonou o conforto da classe média para viver à margem da sociedade. É um clássico cultuado da literatura norte-americana do século XX, que ganha agora sua primeira tradução brasileira, feita por Daniel Galera para a Companhia das Letras.