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A boa vida custa caro: conheça o antropólogo do luxo

Olivia tinha um compromisso marcado com a gerente de uma loja de fragrâncias em Genebra conhecida pelos produtos exclusivos. Estava chateada, porque o perfume usado por todas as mulheres de sua família havia sido descontinuado pela fabricante. Queria que a especialista desvendasse, por meio de uma amostra, a fórmula, para que pudesse reproduzi-lo. Não importava o preço. “É um investimento na tradição da nossa família. Sem a nossa história, o que será de nós?” Assim, se convenceu de que valia a pena gastar entre 12 mil e 15 mil euros para ter o perfume. E pagou adiantado, numa simples passada de cartão de crédito.

Quem testemunhou – e levou ao mundo – o episódio foi Michel Alcoforado, antropólogo que lançou o livro “Coisa de Rico – A Vida dos Endinheirados Brasileiros” (ed. Todavia). Com uma mistura de anedotas bem escritas, histórias chocantes, muitos dados e reflexões essenciais, ele chegou ao topo da lista de obras mais vendidas do país e deixou para trás o fenômeno “Bobbie Goods”, revelando e discutindo a forma de vida dos milionários brasileiros. Os fatos são reais, os nomes são falsos, com exceção dos verdadeiros – ele avisa, logo no início.

“Só estudando os ‘de baixo’ e os ‘de cima’ conseguiremos produzir teorias capazes de dar conta da complexidade do jogo social”, afirma no livro.

Mas como entrar nesse universo e desvendá-lo? Essa foi a maior dificuldade de Alcoforado e que permeia a obra, à medida que ele vai tentando, sem sucesso, fazer parte do mundo dos “de cima” sem ter nascido Orléans e Bragança, Mayrink Veiga, Marinho nem Monteiro de Carvalho. “Na pesquisa antropológica, quando alguma coisa dá errado, ela dá certo”, revela o antropólogo, como um mantra.

A virada de chave aconteceu quando ele ouviu de uma especialista em treinar mordomos, governantas e cerimonialistas, acostumada a trabalhar para os endinheirados: “Eles sabem que você não sabe nada, querido. Quem vai perder tempo com alguém como você? Vai, me diz. Quem? Estuda, garoto!”.

O antropólogo tomou aquilo como um mandamento. Entendeu que, para entrar no mundo dos ricos, não sendo rico, tinha dois caminhos. Ou virava funcionário, ou se transformava no que chama no livro de “especialista” – opção que ele decidiu abraçar. Passou, então, por um processo de aquisição de conhecimento. Começou a ler as colunas sociais de Lu Lacerda, Joyce Pascowitch, mergulhou nos arquivos do Zózimo Barrozo do Amaral (1941-1997), começou a decorar sobrenomes e a genealogia das famílias brasileiras.

“Mas esse processo também me cobrou um esforço de transformação visual. Primeiro com relação à maneira como me vestia, mas também com o meu peso. Porque eu entendi, desde o começo, que a gordura era um claro indicativo de não pertencimento às elites, que mostram muito fortemente o controle sobre o corpo e a performance como caminhos de distinção. Aí, eu emagreci. E passei a reconhecer facilmente marcas como Chanel, Louis Vuitton, Prada, Gucci, Saint Laurent, Louboutin, The Row. Isso obviamente foi impactando a forma como eu me vestia, a minha percepção estética, e foi me dando um pensamento consciente sobre a escolha de cada grife de acordo com o lugar a que ia. Que relógio eu tenho que usar? Que joia tenho de colocar? Qual sapato tenho que pôr no pé? Qual bolsa vou levar? Me submeti a tudo isso, o único ponto foi que não saí rico da pesquisa [risos]. O champanhe que eu bebo hoje não é o que eu mais gosto, mas o que eu mais gosto não cabe no meu bolso”, lamenta, divertido.

Para além do visual, o que abriu as portas dessa nova realidade para o antropólogo foi o estudo. Quase dois anos após o início da pesquisa, partiu para Londres e foi aprender sobre gestão de marcas de luxo. Também fez um curso em Paris. Foram os primeiros passos de uma trajetória que, pouco a pouco, fez com que Alcoforado passasse a ser percebido como alguém entendido e com amigos espalhados pelas principais capitais do globo. E fez com que ele virasse o que definitivamente desobstruiu seu caminho rumo aos milionários: o antropólogo do luxo.

Quando conquistou esse status, todos os nãos que havia encarado viraram história. Passou a ter livre acesso aos endinheirados, a ser chamado para eventos exclusivos e a ter suas questões respondidas.

Do processo, ele reconhece, ficaram resquícios. “As experiências de imersão num trabalho de campo são tão longas e profundas que deixam marcas. Tudo o que aprendi ficou em mim, obviamente. Saí entendendo de marcas, hoje tenho uma percepção estética para moda que não tinha quando comecei essa pesquisa. Mesma coisa para comer e para beber. Mas, por mais que eu avance em outros mundos, as condições materiais de existência se mantêm. Entre os milhares de closets que eu frequentei com marcas de luxo, eu parei na Zara”, ri. “Obviamente, não tenho dinheiro para consumir como os meus interlocutores.”

Aos poucos, Alcoforado compreendeu que o processo pelo qual passou é similar ao que os novos ricos também passam e que são obrigados a se submeter se querem fazer parte daquele universo. “O corpo deles e aquilo que sabem e pensam não servem nesse novo mundo, e são obrigados a enfrentar um processo violento de autotransformação. Mudam a forma de se vestir, seus gostos, os lugares para onde viajam, a música que ouvem, as amizades e os ciclos de relação.” Os muros são altos e, a experiência do antropólogo mostrou, difíceis de serem transpostos.

Agora, o Brasil conta também com um terceiro tipo de rico, que não é o herdeiro nem o emergente, mas aquele que ganha fortunas por meio de crimes e corrupção. No fim de setembro, foi revelado um esquema de lavagem de dinheiro comandado pelo PCC, em que o crime organizado movimentou R$ 1 bilhão, segundo a Receita Federal. Dinheiro usado, entre outras coisas, para comprar iates, carros de luxo e imóveis. Antes disso, a série “Vale o Escrito”, lançada pelo Globoplay em 2023, mostrou o enriquecimento de bicheiros no Rio de Janeiro e suas famílias, inclusive com filhos estudando no exterior. Isso para citar alguns poucos exemplos.

“Eles são novos ricos, mas são diferentes dos emergentes. Fazem fortuna a partir de meios que a gente não sabe muito bem quais são, mas normalmente têm muitos vínculos de reciprocidade com a comunidade – coisas que os ricos, em geral, não têm no Brasil. Os vínculos de reciprocidade dos emergentes e das elites tradicionais se dão única e exclusivamente com a família. Ao contrário desse terceiro grupo, que entende que a posição dele está diretamente relacionada à comunidade e que, por isso, investe em contrapartidas. Escolas de samba são um exemplo.”

Ainda assim, o brasileiro tem seu “rico de estimação”, destaca o antropólogo. E a situação se agrava ainda mais com as redes sociais. “A gente fica com certa inveja, querendo copiar aqueles hábitos. Quando a gente acha maravilhosa a vida do Neymar, por exemplo, a gente está reforçando e legitimando essas elites. Os ricos estão onde estão na pirâmide social porque nós, enquanto sociedade brasileira, reforçamos a posição deles no topo, e isso faz com que eles se mantenham lá sem nenhum questionamento.”

Discussões sobre a branquitude da elite brasileira – e sobre o que encontrou ao se misturar a ela sendo um homem preto – não entraram no livro. “Não quis dar um aprofundamento racial à história, porque os ricos aqui são tão racistas quanto qualquer outro brasileiro, seja das camadas médias ou das classes populares. Se eu falasse sobre isso, o foco facilmente seria: ‘Vejam, vocês, como os ricos são racistas’. E, mais uma vez, alguém dormiria tranquilo. Eu enfrentei com os ricos o mesmo racismo que eu enfrento no supermercado, que enfrentei na universidade, que enfrentei na escola quando pequeno, que enfrento em todos os lugares. E o fato de eu ter comprado coisas de rico, é importante que se diga também, em nenhum momento, me deixou menos preto. Essa é a mensagem que tem que ficar, porque a classe média é muito disposta a se livrar da culpa do seu próprio racismo apontando para os ricos como se só eles fossem. Mas não. São todos.”

O sucesso do livro tem transformado as histórias contadas por Alcoforado em fofocas que vêm animando os leitores. Todo mundo quer saber a verdadeira identidade de quem está por trás dos episódios narrados por ele. E tem quem fique juntando pistas para tentar desvendar quem é quem. “As pessoas já têm me cobrado o volume dois”, diverte-se o escritor. “Tenho um caminhão de histórias. Esse livro terminou com 250 páginas, mas eu escrevi no mínimo 850. De qualquer forma, tudo o que eu tinha que dizer está dito. Livro mesmo não tem mais”, declara.

Especialista em tendências, o antropólogo acredita que a ostentação vá voltar fortemente à moda, e diz que o “quiet luxury” (elegância discreta, sem demonstrações evidentes de riqueza nem grandes exposições de marcas) não pegou por aqui. “Eu nunca acreditei no minimalismo no Brasil. Ele não faz sentido para a sociedade brasileira, porque a gente constrói diferença através das coisas. Se é muito sussurrado, não funciona. E, se não funciona, não vale o preço.”

Afinal, depois de tanta pesquisa, champanhe bom e grifes caras, dá para dizer que dinheiro compra felicidade? “Não, não. O dinheiro só te livra do problema do dinheiro – claro, o que já é alguma coisa! Mas o teu filho vai continuar enchendo o saco, o casamento vai acabar, o teu pai vai morrer. Óbvio que ter dinheiro te garante o mínimo de paz, porque a pobreza gera um sofrimento psíquico grande. A humilhação é um grande produtor de sofrimento na pobreza. Mas, depois que você chega a um padrão digno de consumo, o dinheiro deixa de fazer diferença. As merdas da vida estão ali presentes, não tem como. Se houvesse solução para isso, estava mais caro ainda ser rico.”