Em 1957, a União Soviética lançou o satélite Sputnik, largando na frente dos americanos na corrida espacial. A supremacia tecnológica dos comunistas parecia irreversível, alastrando-se por diversos setores da sociedade – inclusive o mais importante deles, o futebol.
A grande aposta de quase todos os entendidos para a Copa de 1958, na Suécia, era no time liderado por Gavriil Kachalin. O técnico russo já havia levado sua seleção à medalha de ouro olímpica, dois anos antes, com um esquema tático baseado em dados para atletas que não paravam de correr, graças a métodos revolucionários de trabalho físico. Era o avassalador “futebol científico” pedindo passagem.
“Mas futebol não é basquete, e a seleção do Kachalin não resistiu aos três maiores minutos da história do futebol” – analisa o comentarista Paulo Vinicius Coelho, um apaixonado por esquemas táticos e estatísticas, citando a expressão cunhada pelo cronista francês Gabriel Hanot.
Para azar do técnico cientificista, aquele 15 de junho ficaria marcado como o primeiro jogo em que Pelé e Garrincha atuaram juntos numa Copa do Mundo. Com a amarelinha, a dupla jamais foi derrotada. Os dois craques destruíram a lógica montada pela URSS – com a ajuda até de espiões –, carimbando a trave duas vezes, uma cada um, e abrindo espaço para Vavá abrir o placar. O adversário estava nocauteado em menos de 180 segundos.
O Brasil ganharia aquela Copa, sua primeira; como consolo a seu espírito inventivo, os soviéticos seriam campeões europeus em 1960, utilizando-se das mesmas ferramentas.
Como toda tecnologia, de lá para cá a ciência aplicada ao esporte evoluiu até mesmo para leigos. Nos intervalos das transmissões esportivas, atualmente os comentaristas analisam mapas de calor e se amparam nas mais diversas estatísticas – posse de bola, porcentagem de passes certos e finalizações, só para citar as mais comuns – para sustentar suas opiniões.
E, claro, tem gente que leva esse tipo de informação a um nível ainda mais elevado.
Ronaldo Thomatieli Santos carrega um nome de craque e tinha talento suficiente para ocupar a lateral-direita na base do São Paulo. Aos 16 anos, porém, não conseguiu mais conciliar a bola com os estudos e acabou optando pelos livros.
Construiu uma carreira de respeito na área da fisiologia e, nos últimos três anos, tem feito do futebol o assunto de seus artigos acadêmicos. Utilizando-se de milhares de dados fornecidos pela Fifa e por seu time de coração – o Tricolor paulista, claro –, tem chegado a conclusões interessantes não apenas para seus pares, mas dignas de figurar em mesas-redondas e mesas de bar.
Ele lembra que a abordagem científica no futebol começou ainda antes do russo Kachalin – e resultou, por exemplo, na vitória da Alemanha na Copa de 1954. Enquanto as outras equipes patinavam nos gramados enlameados da Suíça, os atletas alemães calçavam chuteiras com travas altas, recém-inventadas por eles – um avanço tecnológico determinante naquela ocasião.
Mas, como PVC, Ronaldo acredita que o fator humano será sempre preponderante quando o assunto for futebol.
“Dados são frios. São números, desenhos, modelos matemáticos. E existe um componente humano no futebol, que é o que decide as coisas. Dado não ganha jogo”, assegura o doutor pela USP, professor do Departamento de Biociências da Unifesp na Baixada Santista e membro da International Society for Exercise Immunology.
Se não ganha jogo – sozinho –, tampouco pode ser desprezado. Nos últimos dois anos, Ronaldo tem colaborado com o São Paulo. Não mais na lateral-direita, mas fazendo predição de riscos de lesão a partir das informações coletadas em jogos e treinos.
Com auxílio de um modelo de Inteligência Artificial, avalia a situação de cada atleta, recomendando o famoso “controle de carga” quando necessário. Quando surge um alerta, a comissão técnica é informada e, em função da importância do jogo, decide se escala ou não o jogador sobrecarregado.
Desde que adotou o método, a equipe do Morumbi diminuiu em 70% o número de lesões musculares. “No começo, a margem de erro era grande, mas a eficiência foi melhorando à medida em que inseríamos mais dados. Hoje, a precisão é de 90%”, diz. “Nunca será zerado, mas é cada vez mais raro ter lesão muscular, é mais comum trauma.”
Nas condições tecnológicas atuais, não seria impossível pensar numa hipótese em que uma IA escalasse uma equipe. De acordo com as características dos jogadores e dos adversários, escolheria os mais aptos do elenco e estabeleceria também a melhor tática para se chegar à vitória.
Antes que os torcedores geeks festejem a demissão em massa dos técnicos, Ronaldo volta à ressalva inicial: o componente humano. “Sempre vai ter uma jogada individual, um erro do juiz, um frango do goleiro, por melhor que ele seja. Na final da Copa do Brasil de 2023, entre São Paulo e Flamengo, a IA cravaria a vitória do Flamengo, mas o São Paulo é que ganhou”, lembra.
As últimas pesquisas de Ronaldo e sua equipe multidisciplinar, formada por integrantes de vários países, utilizaram dados das Copas do Mundo de 2022 (masculina) e 2023 (feminina), coletados por câmeras em pontos estratégicos dos estádios.
Em cada partida analisada, 68 variáveis foram consideradas: velocidade e direção dos deslocamentos, estatísticas sobre passes trocados, certos e errados, finalizações, posse de bola, entre outros que não costumam aparecer nos scouts da TV.
As conclusões são muitas. Para começar: se um time não correr o suficiente, provavelmente será derrotado; mas não basta correr muito, é preciso saber correr. No Catar, os Estados Unidos foram a equipe que mais percorreu distâncias (116,7 km por jogo, em média) e caíram nas oitavas; a campeã Argentina correu 13 km a menos por jogo, em média, e foi apenas a 30ª nesse quesito.
Ninguém lembra do nome de nenhum dos maratonistas americanos, mas quase todo mundo sabe que os hermanos tinham em campo Messi, Di María e Dibu Martínez. “Definitivamente, não tem a ver com correr mais. Se você correr errado, pode acabar prejudicando seu time”, analisa Thomatieli, lembrando que o aumento no número de substituições também elevou a intensidade do jogo.
Na Copa do Mundo do Brasil, em 2014, a Alemanha já exercia muita pressão sobre os adversários, e na época eram apenas três substituições permitidas. Porém, com apenas sete jogos, o Mundial é um torneio de tiro curto, em que é possível dar o máximo.
Já nos campeonatos de pontos corridos, como os nacionais, a intensidade não se sustenta ao longo de 38 rodadas.
A maior probabilidade de vitória, diz Ronaldo, é de quem tem a bola. Porém, ressalva, é possível controlar um jogo mesmo sem ela: “com um meio-campo forte, com uma marcação muito forte, não deixando o outro time jogar”.
De acordo com o ranking da Fifa e a classificação da última Copa, equipes mais fortes em geral também possuem alto volume de passes, linhas de marcação adiantadas e mais cruzamentos. O sucesso na Copa também se associa ao estilo de jogo que prioriza a construção dos ataques e maior tempo no terço final do campo.
Um estudo da Copa de 2018 já mostrava: 82,5% dos gols vieram de ataques construídos, contra 17,5% de contra-ataques.
E em relação ao esquema tático: qual o preferido? Três-cinco-dois, quatro-quatro-dois, quatro-três-três ou quatro-cinco-um? Esqueça uma opção fixa e comece a valorizar mais os coringas do seu time, aqueles que se prestam a múltiplas tarefas em campo.
Utilizando-se dos dados de Argentina, França e Marrocos (campeã, vice e quarta colocada), Ronaldo sustenta que não basta um sistema único durante a partida, mas a alternância deles ao longo dos 90 minutos:
“Essas três seleções faziam tudo: em momentos do jogo, se movimentavam muito sem a bola; em outros, ficavam reativas; e ainda houve momentos em que tinham a bola e faziam incursões na defesa adversária através de passes em profundidade. No caso da Copa do Mundo, o sucesso foi caracterizado pela capacidade de exercer diferentes modelos dentro do mesmo jogo. É uma capacidade de se adaptar em relação ao adversário e às condições físicas dos jogadores.”
Entre as três seleções citadas, temos três continentes diferentes. Ronaldo avalia que europeus e sul-americanos estão mais próximos em diversos dados estatísticos. Marrocos foi a exceção – como já foi a Coreia do Sul em 2002 –, mas as demais confederações continuam atrás.
“A diferença está ficando menor com o passar dos anos, mas os africanos ainda não têm um número de jogadores suficiente para fazer frente a Europa e América do Sul”, diz.
E por falar no embate entre continentes: no aspecto físico, Ronaldo traz boas notícias para os times brasileiros que disputarão o Mundial de Clubes da Fifa em junho e julho. Botafogo, Flamengo, Fluminense e Palmeiras chegarão em melhores condições que seus rivais europeus, que estarão no fim de temporadas desgastantes.
“Teoricamente, é uma vantagem. Mas quanto melhor tiver sido a pré-temporada e o gerenciamento do primeiro semestre, mais os times brasileiros podem se beneficiar. Se até lá errarem no controle da carga e no rodízio dos jogadores, vão minimizar essa vantagem”, explica.