A fusão entre os grupos de moda brasileiros Soma e Arezzo, concluída em julho de 2024, deu origem ao colosso Azzas 2154, avaliado em R$ 13 bilhões. A união do Soma (proprietário de marcas como Animale, Farm e Cris Barros) e Arezzo (detentora de Schutz, Reserva e da marca homônima de calçados femininos) prometia revolucionar o varejo de moda brasileiro. Para dimensionar a ambição do grupo nascente, o nome Azzas remete à ideia de voar, transformar. E 2154 é uma referência ao ano em que o empresário Anderson Birman, um dos fundadores do grupo Arezzo&Co, completaria 200 anos.
Passada a euforia, entretanto, o que se vê nos bastidores é um cenário de tensões, desentendimentos e desafios estruturais. Sinais anteriores já apontavam que a proposta de revolução ambiciosa enfrentaria resistências.
O aeroporto de Navegantes (SC) estava movimentado em 10 de julho de 2024, vinte dias antes de a fusão ter sido sacramentada na Bolsa de Valores de São Paulo. Na área externa ao saguão de desembarque, Roberto Jatahy, fundador do grupo Soma, tinha um olhar fixo. Não ouvira o cumprimento do repórter e nada parecia tirar seu foco do vaivém de carros. Minutos antes, o novo sócio de Jatahy e principal representante da empresa calçadista Arezzo&Co, Alexandre Birman, havia pousado o jato na pista. Ele atravessara apressadamente o corredor do saguão, vestindo as usuais calças escuras e camisa social branca. Com semblante sério, no caminho em direção ao carro que o aguardava, dava orientações à sua nova diretora de marketing, Gisela Dantas, ex-Soma, que havia acabado de receber novas funções.
Além das diversas responsabilidades como líder de comunicação, Dantas desempenhava o papel de mediadora entre duas personalidades e culturas de gestão distintas que teriam de conviver a partir da megafusão. Jatahy, mais acessível às equipes de suas marcas nas decisões sobre os rumos do negócio, contrastava com Birman, conhecido pela firmeza em sua gestão — o que lhe conferiu a reputação de centralizador e diligente no mercado da moda. “Você possui a função mais desafiadora”, comentou o repórter durante o almoço com Gisela Dantas naquele dia. “Tenho?… pois é”, respondeu ela, hesitante.
Dez meses depois, o resultado da fusão já não anima tanto investidores e analistas do mercado de ações. Em meio a rusgas dos sócios, conforme divulgadas pelo portal Pipeline, do jornal Valor Econômico, ampliaram-se os temores de uma cisão no negócio e da saída de Roberto Jatahy da gestão — ambas as possibilidades foram negadas formalmente pela empresa. Em abril passado, demissões indicaram, entretanto, que uma crise está em andamento.
Gisela Dantas, a diretora que devia integrar as culturas diferentes do negócio; o chefe de operações, Cassiano Lemos; e o diretor de recursos humanos, Marco Vidal, deixaram o Azzas 2154. Outros cem funcionários foram demitidos no mesmo mês. Desde a fusão, a ação AZZA3, como o grupo está listado na Bolsa, havia perdido 44% de seu valor até a última semana de abril, quando valia R$ 28,26 — em março, chegou a derreter 57%, em comparação com a estreia de R$ 50,39 em agosto, logo após os rumores do divórcio serem veiculados e a publicação do balanço financeiro do quarto trimestre. Esse relatório indicou recuo nas margens operacionais e retração de 35,9% no lucro em relação ao último trimestre de 2023, mesmo a empresa registrando receita líquida de R$ 3,4 bilhões, uma alta de 13,4% no período.
Analistas criticam a demora na implementação de sinergias que diminuiriam custos, sendo a mais ventilada delas o ganho de eficiência em pontos complementares às duas empresas. O exemplo mais citado é o setor da malharia, ponto central para se entender o imbróglio entre os sócios e os desafios que levariam a uma eventual ruptura na governança da empresa.
A viagem a Santa Catarina de jornalistas e influenciadores naquele mês de julho envolvia um terceiro sobrenome poderoso, além de Jatahy e Birman. Thiago Hering recebeu com entusiasmo o antigo “chefe”, Roberto Jatahy, que, dois anos antes, em 2022, havia comprado a Cia. Hering por R$ 5,1 bilhões, e o novo chefe, Alexandre Birman. No ano anterior a esse acordo, Birman havia feito uma oferta de R$ 3,4 bilhões pela centenária empresa catarinense, mas não obtivera sucesso.
Maior símbolo do estilo básico brasileiro, a Hering sempre teve a família fundadora em cadeiras do conselho de administração e nomes do clã em posições de comando, apesar de deter fatia minoritária no negócio. Quando uma “carta não solicitada” da Arezzo chegou ao conselho diretor com a proposta de fusão e um prêmio em dinheiro, a família não gostou. O então CEO e pai de Thiago, Fabio Hering, definiu o episódio como uma “abordagem mal estruturada”. Nos bastidores, porém, os adjetivos usados eram mais duros e incluíam a palavra “traição”.
A viagem a Santa Catarina tinha como objetivo algo além de apresentar o principal parque fabril da Hering, um complexo que inclui a casa de estilo enxaimel, onde funciona o Museu Hering, e a sede da empresa, uma gigantesca estrutura brutalista do arquiteto Hans Broos, adornada por um imponente jardim de Burle Marx. O recado daquela viagem era tentar demonstrar que o trio dirigente atuava afinado.
Um participante das negociações que levaram à criação do Azzas 2154 foi categórico em definir que o “tesouro” do grupo Soma, para Alexandre Birman, sempre foi a Hering. Para ele, a compra era uma possibilidade de deter não só a marca mais sólida e antiga no cenário da malharia brasileira, mas também a fábrica que daria impulso a “um ganho absurdo de produtividade” nas marcas do grupo. Mesmo que, para isso, investimentos em ampliação precisassem ser feitos. “Se não der, a gente constrói”, disse Birman ao repórter, em conversa informal no passeio catarinense. (Até o momento, entretanto, não há notícias nem sobre uma expansão da capacidade fabril da malharia, nem do percentual de integração alcançado.)
O fato é que, em meio às mudanças na estrutura do grupo e aos ajustes de gestão, a relação entre Thiago Hering e Alexandre Birman evoluiu. Entre os sócios com marcas próprias do Azzas 2154, Hering era o único presente no jantar, dias antes do último Natal, oferecido por Birman a alguns convidados em seu apartamento paulistano, na região dos Jardins. Parte da imprensa de moda esteve presente na celebração e acompanhou o discurso do anfitrião direcionado ao chef francês Cedric Grolet, que estava em São Paulo para uma ação da Hering, razão comercial do encontro. As palavras amistosas dirigidas por Birman ao tímido Thiago Hering, quando este foi presenteado com um livro, chamaram a atenção dos convidados, que se dividiam entre goles de champanhe Ruinart Blanc des Blancs e garfadas no prato de lagosta servido na mesa de jacarandá posicionada no salão da cobertura. Birman e Hering tinham o que comemorar, já que a grife, a “menina dos olhos” do Azzas, terminara 2024 com 8% de incremento na receita, numa performance recorde para a empresa.
Responsável pela divisão de “vestuário democrático” do grupo, que engloba todas as marcas com prefixo Hering, da linha principal à de moda íntima, Thiago Hering consolidou a posição como líder da unidade de negócios no organograma da companhia. Paralelamente, de forma discreta, outra figura-chave dessa história, Rony Meisler, saía de cena.
Meisler foi fundador do grupo Reserva junto com dois sócios e amigos de infância. Antes mesmo de sacramentada a fusão que criou o Azzas, especulava-se sua retirada do grupo, assim que terminasse seu acordo contratual, em dezembro de 2024. O anúncio oficial da saída foi concretizado em agosto. Meisler comandava a divisão AR&Co. do grupo Arezzo – criada em 2020, logo após a compra da Reserva e de suas marcas por R$ 715 milhões, e que também englobaria aquisições futuras como a grife BAW e o brechó online Troc.
Rony Meisler estaria cansado da pressão de gerir o braço de lifestyle do grupo, que não dava prejuízo, sabe-se, mas não enchia os olhos do mercado, exceto pelo sucesso estrondoso da Reserva. No andamento das conversas entre Birman e Jatahy, no final de 2023, Meisler não teria sido consultado até que a negociação chegasse ao conselho, provocando um esfriamento das relações entre eles. O gelo definitivo ocorreu no segundo semestre de 2024, quando o lucrativo projeto da Simples Reserva, a marca de itens básicos da Reserva, foi posto de lado em prol da chegada da Hering no jogo. Em tese, as marcas canibalizariam uma a outra, em razão das interseções comerciais no segmento popular.
O distanciamento entre os três ficou claro quando Rony Meisler não apareceu na Bolsa de Valores de São Paulo, na consumação da união entre Soma e Arezzo que resultou no grupo Azzas. A alegação formal foi de que Meisler estava em férias. Outra ausência deixaria claro o afastamento. Meisler também não compareceu à principal ação empresarial da Reserva em 2024, o lançamento da linha de produtos da grife em parceria com o espólio do piloto Ayrton Senna, realizado no autódromo de Interlagos. Questionado pelo repórter sobre a ausência, um membro da equipe repetiu a desculpa: “férias”.
Em dezembro, não só a Simples Reserva, mas também a grife feminina da Reserva, a Reversa, além de Troc, Dzarm e Alme, tornaram-se marcas extintas do grupo. O que significou que quase todo o braço AR&Co., que estava sob direção de Meisler, foi desmontado. A marca BAW foi revendida aos antigos donos e o grupo de marcas Reserva acabou alocado na unidade “vestuário masculino” — desde fevereiro, a divisão está sob a guarda do ex-conselheiro Ruy Kameyama.
A criação de diferentes braços para abrigar as atuais 29 marcas do grupo, incluindo as subdivisões de Animale, Reserva e Farm, dá uma ideia da dificuldade de tornar eficientes cada um desses núcleos e, ao mesmo tempo, não melindrar a relação entre os sócios. Até a saída de Meisler, a grife Foxton, ex-Soma e um dos maiores concorrentes da Reserva no segmento masculino focado em clientes jovens, estava a cargo de Roberto Jatahy, alocada na divisão “vestuário feminino”. Com a entrada de Kameyama, o desajuste foi corrigido.
Esse tipo de ruído em cargos de gestão é comum em operações como essa e, geralmente, precificado pelos investidores. Na moda, porém, há alguns dedos a mais de ego na receita e, principalmente, um tipo de sentimento incomum a outros mercados. Grifes de moda não são simplesmente empresas de varejo, mas também um aglomerado de pessoas em cargos criativos essencialmente movidas por paixão. Para uma marca funcionar, ela não requer apenas uma gestão assertiva na estratégia de vendas, mas também despertar o desejo de compra em seu público. Esse fator é chave principalmente nas chamadas marcas de tíquete alto (que visam ao consumidor mais sofisticado) como as do grupo Azzas. O despertar do desejo é resultado de uma combinação única, feita sob medida para cada grife. Em geral, é conquistado por meio da tríade novidade, design atrativo e marketing certeiro.
Muito antes da incorporação do grupo Soma pela Arezzo e tempos depois da compra da Reserva pelo grupo calçadista, já circulavam no mercado rumores sobre conversas entre os sócios para a fusão dos grupos. À época, em encontro no Rio de Janeiro, um integrante do alto escalão do Soma, em condição de anonimato, enterrara qualquer possibilidade de associação. “Nunca, jamais. Eles [Arezzo&Co.] são bons em marketing; nós somos bons em produto, em moda mesmo”, explicava.
A realidade, no entanto, é mais complicada. Desde a entrada de Rony Meisler, talvez um dos nomes mais competentes do marketing de moda brasileiro, o grupo Arezzo ganhou mais atenção para suas marcas, sempre presentes em eventos internacionais suntuosos, e se tornou mais agressivo no marketing digital.
Não se pode negar, porém, a trajetória de um sócio calejado. Alexandre Birman levou a cabo a missão de transformar a empresa fundada pelo seu pai, o lendário Anderson Birman, numa gigante que não se resumia apenas à grife-mãe Arezzo. Foi dele a ideia de fundar a Schutz nos anos 1990, provando o valor de seu tino para a moda. Dobrou a reticência do patriarca ao lançar a nova marca, mais afeita às tendências passageiras. Sua outra grife de sapatos, a Alexandre Birman, mais exclusiva e focada em clientes de luxo, ganhou projeção internacional e roda há tempos nos pés do jet-set global.
Outros movimentos de Birman no ramo foram, além da acertada compra da Reserva, as aquisições da concorrente Vicenza, cuja capilaridade no setor de multimarcas agregou receita e capital estratégico ao grupo, e da italiana Paris Texas, famosa entre jovens adeptos de calçados exuberantes com brilho e pegada festeira. O anúncio da compra de 65% do capital da grife europeia por €25 milhões (em valores atuais, mais de R$ 160 milhões) ocorreu com pompa em março de 2023, durante a semana de moda de Paris. No evento, ventilou-se o plano de que parte da produção das marcas Arezzo e Alexandre Birman seria transferida para a Itália, dentro de um processo de internacionalização que, hoje, está em suspenso. No balanço do quarto trimestre do grupo Azzas, a grife aparece como destaque na lista de marcas que, por ora, têm sua operação sendo revisada pela companhia.
A dificuldade em manter legados — de donos de marcas ainda vivos e em condições de criar — é um dos calos da trajetória frustrada de fusões e aquisições de moda no país. O grupo Inbrands, por exemplo, ainda encontra dificuldades em manter vivas operações como as da Richards, Ellus, Salinas e Bobstore, três nomes fortes da moda no início do século e que, hoje, têm a liderança concentrada em poucas pessoas, sem que os fundadores participem do dia a dia. Nos anos subsequentes à consolidação do negócio, firmado em 2008, no qual a Vinci Partners entrou como sócia de Nelson Alvarenga Filho, fundador da Ellus, o clima era de euforia. Alexandre Herchcovitch, Isabela Capeto, VR, G-Star RAW, Mandi e outros medalhões do estilo venderam participações ou o controle total dos negócios. Parte deles recuperou o direito de uso do nome, e outra parte simplesmente sumiu das araras. “É um bando de fashionistas querendo fazer negócio”, criticou, anos atrás, um especialista do mercado financeiro que tentava definir o motivo de o negócio não efetivar uma oferta pública de ações, para se capitalizar por meio de novos investidores.
O grupo Azzas 2154 está muito longe dessa interpretação maliciosa. O endividamento está controlado, a receita é robusta e o controle criativo nas mãos dos fundadores das grifes menores — mais expostas às mudanças que alterem seus pilares criativos. Esses elementos dão segurança ao mercado de que a tormenta pode ser controlada.
A permanência ou não de Roberto Jatahy é, entretanto, acompanhada atentamente no mercado. O fato de Jatahy ter deixado de se reportar a Alexandre Birman e a possibilidade de que, agora, responda apenas ao conselho da companhia abriram margem para especulações sobre uma possível venda de sua participação acionária. Birman estaria à procura de fundos privados dispostos a comprar sua participação. Ambos os sócios de referência são assessorados por escritórios e consultorias diferentes. Dentro da companhia, afirma-se que não está nos planos do CEO do Azzas qualquer dissolução diretiva nas grifes caso o responsável pela unidade feminina, ou seja, Jatahy, decida sair da operação.
Marcelo Bastos e Kátia Barros, por exemplo, continuariam à frente da gigante Farm, joia do grupo Soma que, por meio de um processo consistente de internacionalização nos últimos três anos, virou estandarte da moda nacional no exterior e motor da divisão de moda feminina do grupo. Qualquer alteração mal-recebida pelo mercado nos rumos dessa marca em específico seria vista como um “tiro no pé” da companhia.
Em compasso de espera, o mundo da moda acompanha o desenrolar dos fatos com algum nível de decepção. O futuro dessa associação também respinga no setor que, apesar de ser um dos maiores vetores da indústria da transformação, pena para se consolidar como cadeia global. Um dos planos anunciados no lançamento do Azzas na Bolsa foi a criação de uma semana de moda no Rio de Janeiro e um prêmio para jovens estilistas aos moldes do LVMH Prize, do grupo francês dono de Louis Vuitton, Christian Dior e Tiffany & Co. Nada indica que as ideias tenham ido adiante.
O grupo Azzas 2154 não respondeu aos pedidos de entrevista ou aos questionamentos enviados pela reportagem. Por meio de sua assessoria, limitou-se a dizer que “vem trabalhando intensamente em alavancas estratégicas que aliam sinergias, criação de valor e eficiência”, e que isso inclui “uma revisão estratégica da estrutura organizacional, no portfólio de marcas e nos processos operacionais”.
Sobre a relação entre os sócios de referência, Alexandre Birman e Roberto Jatahy, a companhia afirma que eles “dialogam constantemente sobre o aprimoramento na governança” e que as conversas “podem culminar em eventuais ajustes no acordo de acionistas vigente”. Entretanto, não haveria “qualquer negócio celebrado entre eles e que a cisão ou segregação de negócios da Companhia não está em discussão”.
Rony Meisler foi sucinto, quando consultado. Por mensagem, resumiu que ele e os antigos sócios “estão ótimos”, “em novos projetos” e desejam “tudo de melhor a todos”.