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Surfe em piscina de ondas: Brasil investe forte na modalidade

São Paulo está perto de inaugurar dois clubes com ondas artificiais este ano. Barueri, Mangaratiba, Búzios e Curitiba já projetam os seus. “Esquire Brasil” disseca essa nova tendência, que vai rapidamente impactar a evolução do esporte e encantou até Pharrell Williams

Talvez como reflexo direto do protagonismo no surfe mundial, o Brasil mergulhou de cabeça na era das ondas artificiais. De Santa Catarina ao interior de São Paulo, passando pelo litoral fluminense e chegando a Curitiba, brotam projetos sofisticados, autorais e ousados – cada um com sua tecnologia, mas todos com o mesmo objetivo: criar a onda perfeita. Uma promessa tentadora, mas exclusiva, voltada a um público disposto a investir a partir de R$ 300 mil pela chance de surfar tubos calibrados, com hora marcada, sob holofotes ou céu azul, às vezes dezenas de quilômetros do mar mais próximo. É uma ideia que fala diretamente ao imaginário de uma geração que cresceu vendo o surfe como subcultura.

Na capital financeira do país, já se veem pranchas cruzando a metrópole rumo ao improvável: ondas de sonho no meio da Selva de Pedra. Ali, dois dos principais empreendimentos nacionais — o São Paulo Surf Club e o Beyond the Club — estão com suas piscinas prontas para testes. As inaugurações prometem acontecer neste segundo semestre. Em Barueri, o Reserva Beach Club projeta abrir as portas no ano que vem, adicionando mais um hotspot aquático à paisagem urbana. Em Búzios e em Mangaratiba, é a empresa Brasil Surf Club que promete inaugurações já a partir de meados de 2026.

Entre os mais comentados está o São Paulo Surf Club, uma aposta da incorporadora JHSF, conhecida por projetos como o Shopping Cidade Jardim, Fazenda Boa Vista e sócia do grupo Fasano. O clube, com título familiar a R$ 900 mil, traz a tecnologia PerfectSwell dos Estados Unidos, conhecida pelos surfistas por gerar ondas com fluidez e personalidade. A PerfectSwell é responsável pela onda do Boa Vista Village, em Porto Feliz — um paraíso privado onde a piscina é uma das atrações de um complexo com condomínios, hotel de luxo e um town center desenhado para quem não quer sair do entorno. Hoje, qualquer apartamento ali parte de cifras na casa dos R$ 10 milhões — e as gruas seguem erguidas, com dezenas de torres a caminho. O local virou um ambiente efervescente onde surfistas amadores dividem espaço com estrelas do cenário internacional.

 

Ítalo Ferreira no São Paulo Surf Club (Foto: Divulgação)

 

Especialista no assunto, o publicitário Edu Grinberg — diretor da operação de piscinas de ondas da JHSF — destaca uma mudança de comportamento dos praticantes nesses ambientes controlados: “O que a gente faz ao tirar o surfe do mar é eliminar o caos, a disputa feroz pelas ondas. Aquela pessoa que no mar seria seu adversário, na dinâmica das ondas artificiais vira seu amigo. Nesse ambiente, geramos ondas perfeitas e desafiadoras para os mais diferentes níveis, somando serviços especializados de técnicos e captação de imagens que estão acelerando a evolução dos sócios”.

A PerfectSwell é o braço da empresa American Wave Machines, que ganhou o mundo no ano 2000 ao criar uma tecnologia pneumática que também produz ondas de qualidade e sessões de altíssima performance. Sua base em Waco, no Texas, virou um laboratório mundial de manobras aéreas. Bruce McFarland é engenheiro espacial, já trabalhou na Nasa, e hoje é CEO e criador do projeto ao lado de sua mulher, Marie. Ele resume a visão que o guiou nessa revolução: “Não queremos só simular uma onda. Queremos libertar o surfe das limitações do oceano, torná-lo mais acessível, levá-lo para longe do mar, mas reproduzindo toda diversão que ele proporciona”.

Ítalo Ferreira já vem testando as ondas do São Paulo Surf Club na capital paulista. O campeão olímpico de Tóquio e vice-campeão da etapa do circuito mundial realizada no Surf Ranch, de Kelly Slater, em 2023, tem usado as piscinas da JHSF como laboratório de manobras — testando todo tipo de rotações e combinações técnicas, tudo feito numa velocidade jamais vista. Com a dedicação, veio a consagração. No início da temporada 2025, a WSL resolveu dobrar a aposta: levou a tecnologia de ondas artificiais para o coração do deserto árabe. Em parceria com investidores dos Emirados Árabes Unidos, ergueu em Abu Dhabi uma estrutura inspirada na piscina de Slater, só que com contornos luxuosos e arquibancadas que lembravam as grandes arenas do tênis. Uma etapa do Championship Tour foi disputada ali — sob holofotes, sem maré, sem caos. Tudo programado. Ítalo Ferreira venceu a etapa com autoridade.

“Treinar em piscina de onda me deu confiança. Às vezes, a gente precisa de controle para acessar o imprevisível. Nessas sessões, consegui ajustar meu surfe no detalhe. Quando cheguei em Abu Dhabi, parecia que eu já tinha passado por ali. Foi como trazer a alma da praia para dentro da máquina”, diz o campeão mundial de surfe de 2019.

Atualmente, o maior concorrente da JHSF “dentro d’água” é a KSM Realty, a primeira a fazer piscina de ondas no Brasil (a Fazenda da Grama, no interior de São Paulo). A incorporadora, sócia do BTG Pactual no empreendimento, lançou há dois anos o Beyond The Club, a menos de cinco quilômetros do São Paulo Surf Club. No projeto, mantiveram a tecnologia Wavergarden. Se a JHSF tem Ítalo Ferreira como garoto-propaganda, o Beyond convidou Gabriel Medina para ser sócio – há intenção de expansão do clube para o Rio e algumas outras cidades fora do Brasil.

 

Beyond The Club (Foto: Divulgação)

 

Em maio e junho, Medina foi visto, ao lado de Pedro Scooby e Gabriel Pastore, entre outros surfistas, testando as ondas do Beyond. Foi a primeira vez, depois de quatro meses, que o ídolo brasileiro voltou a surfar. Já deu para notar que as ondas estão bem melhores que as da Fazenda da Grama, com tubos que chegam a quatro segundos. Medina estava ali para ajudar a ajustar a tecnologia da espanhola Wavegarden, criada em 2004 por Josema Manuel Odriozola e Karin Frisch, dois pioneiros ao unir ciência e paixão.

 

Gabriel Medina (Foto: Divulgação)

 

O primeiro protótipo da Wavegarden surgiu nos Pirineus bascos, onde uma pequena equipe de engenheiros testava mecanismos submersos que geravam ondas pequenas, mas constantes. Hoje, a empresa, que não parou de evoluir a sua tecnologia, comanda complexos em mais de quatro continentes, incluindo dez países, como Coreia do Sul, Suíça, Austrália e Brasil (eles estão também em Garopaba, com a Surfland). O multitalentoso Pharrell Williams escolheu essa tecnologia para seu empreendimento nos EUA. “O objetivo sempre foi criar ondas com a sensação de surfe real, em um ambiente seguro e controlado”, explica Odriozola. “A ideia nasceu na garagem, literalmente, com motores reciclados e uma piscina de lona.”

A Wavegarden mantém um laboratório no País Basco, onde suas ondas são testadas. Para o Brasil, a empresa promete a melhor e mais nova tecnologia, com ondas maiores e mais extensas que as da Fazenda da Grama e da Surfland – e, pelo que se viu, vai entregar. A expectativa é alta e o projeto tem tudo para ser um sucesso. Ao todo foram colocados 3.000 títulos à venda – até junho, mais da metade havia sido vendido. O valor? R$ 770 mil.

O Beyond é um espaço bem mais completo que o São Paulo Surf Club, com mais quadras de tênis, além de academia de 2.000 metros quadrados, campos de futebol, restaurantes e pista de skate projetada por Bob Burnquist. Entre os sócios dos dois clubes, a pergunta que fica é: qual onda será melhor? É quase um consenso que o Boa Vista Village, com a tecnologia PerfectSwell, proporciona uma experiência mais interessante para os surfistas que a Praia da Grama. Mas se o Beyond será melhor que seu irmão no interior de São Paulo e poderá superar as ondas da PerfectSwell, o tempo logo dirá.

Outras empresas seguem a trilha da alta tecnologia aliada ao surfe. A Surf Lakes, da Austrália, criou um sistema centrífugo que gera múltiplas ondas simultâneas em diferentes direções — ideal para parques com diversos níveis. Já a canadense Endless Surf, tecnologia baseada em ar pressurizado, da White Water, líder mundial no design e manutenção de parques aquáticos, oferece versatilidade e personalização — uma espécie de playlist de ondas sob medida. Juntas, essas empresas estão redesenhando um esporte ancestral e construindo um futuro de desenvolvimento sem limites.

Na cronologia do segmento em terras brasileiras, o primeiro projeto dessa nova era foi o Praia da Grama, em Itupeva, interior de São Paulo, inaugurado em 2021. Em 2023, vieram o Boa Vista Village Surf, em Porto Feliz (SP), e a SurfLand, em Garopaba (SC). Para um futuro próximo, estão previstas as estreias dos ambientes indoor da Surf Center, com unidades em Curitiba e no interior de São Paulo, além de duas unidades do projeto Brasil Surfe Clube, em Búzios e Mangaratiba, no Rio de Janeiro. O Reserva Beach Club, em Alphaville, São Paulo, também já está em fase de captação de sócios.

 

Praia da Grama (Foto: Divulgação)

 

“A gente escolheu uma tecnologia que não depende de buraco no chão para evoluir. Com a Endless, tudo é modular, tudo é programável, tudo pode ser atualizado por software”, conta Ricardo Laureano, CEO do Brasil Surfe Clube. “Isso permite escalar — e é isso que a gente vai fazer. Queremos ter de oito a dez piscinas no Brasil em dez anos. E não é para atender quem já surfa bem, é para trazer quem nunca surfou. Esse é o mercado que interessa”, completa o CEO, que tem como sócio o banco Opportunity.

Os modelos de negócio no Brasil variam — de clubes exclusivos, condomínios e parques com day use —, mas o movimento é claro: as piscinas de ondas tornaram-se símbolos de uma nova economia do surfe, no qual tempo, localização e estilo de vida convergem num formato de luxo.

E se o sonho virou verdade, um personagem importante nesse processo é Kelly Slater, 11 vezes campeão mundial. O surfista da Flórida passou anos — e gastou milhões de dólares — obcecado por um sonho: criar e controlar uma onda perfeita, previsível, repetível. “Eu queria construir uma onda que eu pudesse surfar todos os dias, do jeito que eu imaginava quando fechava os olhos na infância”, disse ele, em uma das primeiras apresentações da Kelly Slater Wave Company, em 2015. “Não tem a ver com substituir o mar. Mas expandir as possibilidades do surfe.”

A criação de Slater, uma piscina longilínea no interior da Califórnia, movida por uma lâmina de deslocamento que empurra água ao longo de um trilho com precisão cirúrgica, gerou ondas longas, com seções tubulares e, quando os ventos do deserto não se impõem, lisas como vidro — hipnotizantes. “A diferença é que no oceano você precisa reagir, aqui você pode criar”, explica Slater. A primeira experiência de um praticante nesse ambiente utópico pode mudar a sua percepção do esporte para sempre.

Ex-surfista profissional e administrador de empresas, Bruno Coutinho dá uma medida do impacto desse fenômeno: “A sensação ao cair pela primeira vez no Surf Ranch foi a de que eu tinha ido à Lua. Fiquei desnorteado por duas, três semanas, só pensando o quão impactante tinha sido aquela experiência, de surfar uma onda tão incrível no meio do deserto na Califórnia.” Com o sucesso do empreendimento e de outros projetos tecnológicos, abriu-se um novo capítulo. E nesse movimento, o esporte que nasceu como celebração da vida com a natureza passou a flertar com a ficção científica.

Se a piscina californiana nasceu como uma fantasia pessoal de Kelly Slater, ela logo se transformou em vitrine oficial do surfe competitivo. A World Surf League, que há tempos busca equilibrar espetáculo e autenticidade, incorporou a onda artificial ao seu circuito de elite a partir de 2018. O Surf Ranch Pro, etapa realizada na piscina de Slater, dividiu opiniões desde o início. Para uns, um laboratório estéril que elimina a essência do surfe. Para outros, um palco futurista onde cada manobra é medida em pixels e precisão. Para grandes redes de televisão que desejam transmitir surfe ao vivo, a piscina permite previsibilidade, com baterias com horas marcadas, como em um jogo de futebol. Transmitir competições no mar deixa as emissoras dependendo da boa vontade de Netuno.

Mas se há algo incontestável nesse cenário futurista é a habilidade dos brasileiros de se adaptar ao novo script. Gabriel Medina foi campeão na primeira edição. Filipe Toledo venceu duas vezes. Ítalo Ferreira, uma. Aqui vale um resgate histórico. Gabriel Medina, Ítalo Ferreira e Filipe Toledo não tinham nem nascido quando Fábio Gouveia, durante sua ascensão no circuito mundial, colocou a bandeira do Brasil duas vezes no topo do pódio em disputas na Ocean Dome, complexo de ondas artificiais situado em Miyazaki, no Japão, que hoje está desativado. “A gente achava que aquele seria o futuro, e que as coisas iam evoluir muito rápido, mas não foi bem assim”, diz ele.

“O surfe está mudando, como tudo no mundo. E tudo bem”, diz Gabriel Medina.

Por trás das piscinas que hoje simbolizam a nova fronteira do surfe estão engenheiros visionários que, como Kelly Slater, sonharam com a onda perfeita. Os mais destacados deles também vieram do mar, mas combinaram suas vivências no oceano com conhecimentos de matemática, física e hidrodinâmica — e, assim, redesenharam o mapa do surfe mundial. A nova onda do surfe levanta debates sobre acessibilidade, impacto ambiental e o risco de descaracterização cultural. Do ponto de vista ecológico, os projetos mais avançados oferecem reúso de água, baixo consumo energético e integração com o entorno. Os diferentes modelos de negócios desses complexos de ondas artificiais têm, comprovadamente, gerado valor para o mercado imobiliário e o turismo.

Outro aspecto que desperta curiosidade é a possibilidade de atualização dos sistemas. Josema Odriozola, da Wavegarden, esclarece: “Graças à flexibilidade da nossa tecnologia e ao retorno que recebemos dos visitantes e operadores, nossos engenheiros estão constantemente programando novas ondas e implementando atualizações nos menus atuais”. Miquel Lazaro, da PerfectSwell, reforça: “Nossos espaços são atualizados com novas ondas e avanços tecnológicos sempre que possível. O McFly, desenvolvido em São Paulo, agora é popular no Japão e foi instalado remotamente pelos engenheiros da American Wave Machine.”

O supercampeão Ítalo Ferreira é a prova viva desse avanço. Em março de 2025, ele executou o que foi considerado o maior aéreo “Superman” jamais visto. Não há como negar: há beleza nesse encontro entre tecnologia e paixão. A evolução dos aéreos, a precisão das manobras, a oportunidade de aprendizado constante — tudo isso projeta um futuro em que o surfe pode ser mais acessível, diverso e surpreendente.

“O surfe está mudando, como tudo no mundo. E tudo bem”, diz Gabriel Medina. “O importante é manter o sentimento. Onde tiver esse sentimento, vai ter surfe de verdade.” Na borda entre o sagrado e o sintético, entre o tubo do Taiti e o do Texas, está o desafio do tempo: preservar a alma enquanto se desenha o amanhã.

Nascido nas ilhas do Havaí como um ritual ancestral, o surfe atravessou séculos e oceanos até se tornar um fenômeno global. Hoje, esse mesmo surfe desfila em arenas olímpicas, alimenta um mercado bilionário, influencia a moda, a arte e o comportamento. E, diante dos nossos olhos, vive a revolução: ondas fabricadas por máquinas.

Esse paradoxo entre o surfe natural e o artificial vai muito além da notável evolução tecnológica, ele gera uma transformação cultural, filosófica. Ao criar ondas que imitam as do oceano, estamos essencialmente recriando em ambiente controlado um fenômeno natural dos mais sublimes, em que a magia da imprevisibilidade dá lugar à precisão técnica. Isso levanta uma questão crucial: estamos diluindo o aspecto imprevisível que define a beleza do surfe, ou estamos apenas tornando o esporte mais acessível e potencializando a sua evolução?

O avanço das ondas artificiais reflete um desejo ancestral do ser humano, de controlar a natureza e, no caso do surfe, proporcionar aos praticantes, sejam iniciantes ou profissionais, um espaço onde o aprendizado e a evolução mais sofisticados possam acontecer de forma constante.