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Geração Mounjaro: o que acontece com a cultura dos restaurantes quando o hedonismo perde espaço no cardápio?

Uma pesquisa recente da Morgan Stanley com usuários de GLP-1 mostra que 63% reduziram os gastos em restaurantes e 61% também cortaram despesas com delivery. O comportamento alimentar está mudando — e isso pode significar ter de redesenhar o modelo de negócios de toda uma indústria.

Jantar fora tornou-se, para muitos, apenas uma forma de socializar, e menos uma experiência de comer bem, de provar algo gostoso, de se permitir uma sobremesa ao fim da refeição – uma prazer que se tornou (cade vez mais) esporádico.

O relatório da Morgan Stanley confirma que usuários de Ozempic e medicamentos semelhantes continuam a sair para comer, mas fazem escolhas diferentes – menos pratos, porções menores, sem vinho, preferência por proteínas e foco na socialização.

Sábado de lua nova em plena primavera — uma daquelas noites em que tudo convida a sair: 23 graus lá fora, ruas cheias de gente, restaurantes lotados, muitos com filas à porta. Um grupo de três casais chega a um deles e pede uma mesa para seis. O maître sorri, sugere que esperem no terraço com uma taça de vinho, e em meia hora arranja-lhes um canto ao lado do sofá. O garçom aproxima-se, distribui os menus e pergunta se querem água. É a única escolha em que todos concordam. Nesta noite, ele terá de estar atento aos pedidos especiais, e a cozinha enfrentará trabalho extra para adaptar os pratos do recém-lançado menu às restrições e exigências dos seis clientes da mesa 12.

Uma das mulheres é vegetariana, mas quer o risotto com um legume em vez do cordeiro. Outra não come glúten, enquanto o marido, intolerante à lactose há quatro anos, precisa evitar qualquer derivado de leite. O homem mais novo, pai recente, pede dose dupla do peixe do dia para bater a meta de proteína; a companheira escolhe a salada — desde que começou a tomar Ozempic, pouco depois do parto, já não consegue mais comer muito.

 

Ilustração: Abiuro

 

“Há casos em que dá para perceber facilmente quando a alergia é real e importante — geralmente, a pessoa avisa com antecedência”, afirma o chef Paulo Airaudo, do Amelia, restaurante com duas estrelas Michelin em San Sebastián, cidade do País Basco consolidada como um destino imperdível para os amantes da gastronomia. “Agora, somos muito claros em nosso site ao dizer que não adaptamos o menu por preferências pessoais. O menu foi pensado daquela forma e não conseguimos mobilizar toda a equipe para alterar os pratos só porque uma pessoa não gosta disso ou daquilo”, diz o chef, que também comanda casas espalhadas pelo mundo, de Hong Kong a Florença.

Uma adaptação que fez recentemente ao menu-degustação é a quantidade de pratos: “Queremos que seja mais curto, menos maçante. As porções vêm como vêm, se a pessoa não quiser comer tudo, é uma questão dela”, diz.

Airaudo diz listar de forma bem detalhada quais alergias o restaurante consegue atender e quais não. “Se a pessoa não come carne, por exemplo, podemos adaptar, ou se não come frutos do mar, ou algo assim. Mas não dá para criar pratos na hora para atender às exigências todas que as pessoas têm. Seria inviável, necessitaria uma equipe muito maior, mais gastos”, aponta. São cada vez mais comuns as pessoas que já saem para comer com uma lista de exigências.

Vivemos a era da “moderação mainstream”, como cunhou o jornal “Financial Times”, explicando em uma reportagem publicada em fevereiro que há uma “forte mudança em direção à temperança” quando falamos dos prazeres da mesa. É o declínio do hedonismo gastronômico em tempos de obsessão por dietas e monitoramento constante de indicadores corporais. Uma vigilância que agora também se senta à mesa dos restaurantes. Jantar fora tornou-se, para muitos, apenas uma forma de socializar, e menos uma experiência de comer bem, de provar algo gostoso, de se permitir uma sobremesa ao fim da refeição fora de casa — um prazer que se tornou (cada vez mais) esporádico.

“Há quem venha ao restaurante e nos peça para servir todos os sushis sem arroz, como se fossem sashimi — um pedido um tanto ridículo”, admite com bom humor Gerard Barberan, que comanda o premiado restaurante japonês Kuro, em São Paulo, além de outras casas na cidade, como a Bottega Bernacca. O chef reconhece que, muitas vezes, essas solicitações vêm de restrições alimentares, como nos casos em que tenta sempre adaptar os pratos para evitar os crustáceos a quem tenha alergia a eles. Mas outras vêm de dietas específicas, algo que mais comumente alguns clientes revelam diante do pequeno balcão de apenas 10 lugares. “Eles dizem abertamente que estão comendo menos porque estão tomando Ozempic”, conta Barberan, em referência ao remédio da classe GLP-1 (como também Wegovy, Mounjaro e Zepbound). Originalmente criados para tratar diabetes, hoje passaram a ser amplamente utilizados para emagrecimento, em dietas rápidas e muito efetivas. “Principalmente por uma faixa da população que é exatamente a do nosso público”, observa ele, que no entanto salienta que já observava alguma tendência de moderação antes mesmo do medicamento ganhar popularidade.

O consumo desses medicamentos explodiu em todo o mundo — nos Estados Unidos, um dos países com maior número de usuários, um em cada oito adultos já tomou ou está tomando algum remédio dessa classe. As projeções indicam que o país deve alcançar 30 milhões de usuários até 2030, o equivalente a cerca de 9% da população. No Brasil, os dados ainda são dispersos, mas o anúncio recente da farmacêutica dinamarquesa Novo Nordisk — responsável por patentes como Ozempic e Wegovy, usados no tratamento de diabetes e obesidade — de que abrirá uma fábrica em Minas Gerais para produzi-los localmente confirma o avanço da tendência também por aqui. Outros laboratórios já entraram nessa corrida, desenvolvendo versões ainda mais modernas e eficientes, transformando a guerra contra a obesidade (ou simplesmente o desejo de perder alguns quilos para o verão) em um mercado global em plena expansão. Como esses medicamentos atuam sobre três áreas fundamentais do cérebro ligadas ao comportamento alimentar — a fome, a saciedade e o prazer de comer (o chamado hedonismo alimentar) — os efeitos à mesa prometem ser transformadores. Algo comparável, em escala e impacto, ao que o Viagra e seus similares representaram para uma nova revolução sexual.

O efeito dos medicamentos da classe GLP-1 sobre o setor de alimentação é o oposto do que aconteceu com os motéis após a popularização dos remédios para disfunção erétil — também usados de forma recreativa. Enquanto os estimulantes sexuais impulsionaram um segmento inteiro da indústria, os supressores de apetite estão fazendo o movimento inverso nos restaurantes e bares. Usuários desses medicamentos — como Ozempic, Wegovy e Mounjaro — têm comido menos, pedido porções menores e, com frequência, deixado pratos praticamente intocados. Empresários e garçons ao redor do mundo já notam mudanças claras no comportamento dos clientes: entradas e sobremesas vêm sendo descartadas com frequência, e muitos consomem quantidades visivelmente menores de comida e bebida.

O impacto, por ora, ainda é pontual. Mas o que acontecerá com esses negócios quando 10%, 20% ou até 30% da população mundial estiver usando esse tipo de medicamento? Esse é o cenário projetado pelas farmacêuticas mais otimistas — e que já acende alertas no setor. Uma pesquisa recente da Morgan Stanley com usuários de GLP-1 mostra que 63% reduziram os gastos em restaurantes e 61% também cortaram despesas com delivery. O comportamento alimentar está mudando — e isso pode significar ter de redesenhar o modelo de negócios de toda uma indústria.

No TanTan, um dos mais premiados bares de São Paulo (é o único brasileiro na cobiçada lista do World’s 50 Best Bars), o empresário Thiago Bañares já percebe o efeito de clientes pedindo menos drinques — ou optando por versões com baixo teor alcoólico, uma tendência que ele e sua equipe vêm acompanhando de perto há algum tempo. “A gente sempre teve um público que busca experiências, mas é visível que muitas pessoas estão mais comedidas”, diz. Desde os primeiros anos da casa, Bañares investe em opções sem álcool, como cordiais feitos artesanalmente, que ele considera uma forma elegante de servir algo especial para quem quer socializar sem parecer deslocado. “Era como oferecer uma soda feita no bar. Só que agora a demanda cresceu — e exige mais criatividade”, afirma. Foi assim que o discurso em torno dos cocktails (os famosos coquetéis sem álcool) surgiu com força, mas não chegou a engrenar, conta ele. “No início, eu tinha na carta, mas não vendiam”, explica, em alusão ao fato de estarem deslocados da experiência dos outros, quase excluídos da roda.

Para ele, o futuro não está no zero absoluto, mas no equilíbrio. “Muita gente busca opções com menos impacto no corpo, sem necessariamente cortar o álcool de vez.” Hoje, seus coquetéis preferidos atualmente são os low proof, feitos com vermute ou jerez, e menos destilados. “Profissionalmente, acabo por ter que beber muitas vezes. Assim, dá pra tomar quatro, cinco numa noite sem se embriagar. É sobre continuar curtindo sem o peso do álcool”, diz Bañares. Algo importante para as pessoas que querem diminuir a quantidade de ingestão alcoólica sem deixar de lado a socialização que as bebidas representam. Por isso, na nova carta do TanTan, os coquetéis sem álcool aparecerão misturados aos demais, sem separação ou seção especial no cardápio. “O grande desafio do coquetel sem álcool é reproduzir a sensação do álcool — textura, picância, corpo. Por isso, na nova carta, vou incluir esses coquetéis com os demais, sem separar como ‘mocktail’. A única informação será: graduação alcoólica zero. Precisamos de coquetéis sem álcool que nem pareçam que são.”

Enquanto para alguns reduzir o consumo de álcool é uma escolha consciente, para outros trata-se de um efeito colateral dos medicamentos agonistas do GLP-1. Substâncias como a semaglutida – princípio ativo de remédios como Ozempic e Wegovy – têm mostrado impacto não apenas no apetite, mas também em desejos por álcool, nicotina, opióides e até em comportamentos compulsivos, como jogos de azar e compras online. Estudos clínicos indicam que esses medicamentos podem ser promissores no tratamento do alcoolismo. Um ensaio publicado em fevereiro na JAMA Psychiatry, por exemplo, mostrou que a semaglutida reduz o desejo por bebidas alcoólicas. Muitos usuários relatam que, após o início do tratamento, não conseguem mais beber do mesmo jeito — se antes consumiam uma garrafa de vinho num jantar, agora mal conseguem terminar uma taça.

No TanTan, Bañares diz que o perfil dos coquetéis tem mudado (menos pesados no perfil e na graduação alcoólica) para seguir esta tendência, com um aumento gradativo nos pedidos dos sem ou com menos álcool. Um certo impacto já começa a ser sentido em outros bares e restaurantes no mundo, onde já se nota uma queda nas vendas de bebidas alcoólicas. E isso preocupa: em muitos desses estabelecimentos, as bebidas (sejam alcoólicas, cafés, refrigerantes ou chás) representam uma parte significativa da receita — em alguns, são elas que garantem a viabilidade financeira do negócio.

O setor da restauração enfrenta hoje um cenário particularmente desafiador, sem ter conseguido se reequilibrar plenamente desde a pandemia. Margens de lucro mais apertadas, inflação persistente que impacta todos os custos e uma mão de obra cada vez mais escassa e dispendiosa compõem um panorama instável. Soma-se a isso a popularização de medicamentos que reduzem o apetite e o desejo por comida e bebida, agravando ainda mais a situação. Esses fármacos integram uma série de novas limitações que vêm moldando os hábitos dos comensais, cada vez mais guiados por normas de controle alimentar.

Restaurantes são, historicamente, espaços de convívio – mais do que apenas lugares para comer. Mas quando comida e bebida tornam-se coadjuvantes, o modelo de negócio sobre o qual esses espaços se sustentam começa a vacilar. A mudança é de consumo, não necessariamente de hábito, mas já dá forma a comportamentos que ainda são difíceis de mensurar.

O relatório do Morgan Stanley confirma que os usuários de medicamentos agonistas do GLP-1 continuam a sair para comer, mas fazem escolhas diferentes – menos pratos, porções menores, sem vinho, preferência por proteínas e foco na socialização, em vez da indulgência gastronómica. Da mesma forma que pessoas com restrições alimentares ou alergias não deixam de frequentar restaurantes, mas vivem a experiência dentro de certos limites (alguns autoimpostos, é verdade); afinal, o cliente tem as suas próprias razões.

Para muitos estabelecimentos, será preciso mais do que criatividade na cozinha: talvez seja necessário repensar profundamente toda a experiência à mesa; ou ao balcão. Nesse novo cenário, a pergunta que se impõe não é se o setor da restauração sentirá os efeitos dessas transformações, mas como — e até onde. À medida que o prazer de comer se dilui em restrições voluntárias ou farmacologicamente induzidas, bares e restaurantes precisarão rever não só seus menus, mas o papel que desempenham na vida social contemporânea.

Talvez o futuro da restauração não dependa apenas de grandes pratos e harmonizações de vinhos, mas da capacidade de criar experiências significativas mesmo para quem tem cada vez menos fome. Reinventar a mesa, afinal, pode ser a única forma de manter vivo o desejo — mesmo que ele agora venha dos outros sentidos.