Imagine um barco no oceano. Qualquer tipo de barco: navio de cruzeiro, veleiro, canoa. Agora visualize a parte do casco do barco que não é visível porque está submersa. Onde essa parte está, normalmente haveria água, mas o barco a empurrou para fora. O peso da água que estaria ocupando esse espaço, caso o barco não estivesse ali, é chamado de deslocamento. Se uma embarcação desloca o peso equivalente à quantidade de água, ela consegue flutuar. Caso contrário, afunda. Este é o princípio da flutuabilidade – a grande descoberta de Arquimedes, que exclamou “Eureka!” ao encontrá-la. Um princípio fundamental.
Há um homem na França que construiu uma carreira em torno do conceito de deslocamento. Axel de Beaufort passou as últimas duas décadas projetando barcos, muitos deles veleiros de corrida cujas quilhas finas deslocam filetes do Oceano Atlântico enquanto cortam as ondas. E, desde 2012, ele projeta outros objetos, centenas deles, que não deslocam água, mas algo diferente.
Como diretor do Ateliers Horizons – um minúsculo, mas agitado laboratório criativo dentro da gigante de moda Hermès – ele desenha objetos personalizados para pessoas abastadas que contratam a grife francesa para dar forma ao que desejam: um taco de críquete, um alto-falante Bluetooth de US$ 25.600, uma canoa, um bar portátil para coquetéis, uma bicicleta, luvas de boxe ou os assentos de luxo de seus jatos particulares Gulfstream.
Horizons é uma divisão relativamente nova da Hermès, fundada em 1837, mas talvez seja a mais fiel às origens da empresa. Para a Hermès, o Horizons é uma forma de satisfazer uma clientela disposta a pagar cerca de R$ 270 mil por luvas de boxe montadas com as costuras feitas à mão, marca registrada da empresa, ou R$ 18 mil por um skate com gráficos impressos em verniz pigmentado, que nunca desbota, e eixos projetados sem logotipos.
E para Beaufort? Por que ele cria esses objetos? Ele é engenheiro, arquiteto naval formado, responsável por projetar alguns dos veleiros de corrida mais rápidos do mundo – um trabalho que ainda desempenha em sua empresa, Axel de Beaufort & Partners. Ele estuda deslocamento e como reduzir o peso de um barco para que veleje mais rápido, ajustando os recortes da vela principal, usando laços em vez de mosquetões para as cordas no casco e projetando duplos lemes para maior controle em competições, onde cada centímetro faz a diferença. Esse trabalho está transformando um esporte tão antigo quanto o próprio conceito de esporte.
Mas um skate sofisticado? Uma bolsa de couro fina para levar uma garrafa de vinho ao parque?
Se você somar tudo ao que foi “deslocado” pelos objetos criados por Axel de Beaufort para a Hermès, qual seria o total? Ao adicionar essas criações ao mundo, qual o valor do que foi deslocado?
“Alguns designers querem exagerar em tudo”, diz Beaufort, sentado na sala de exposição do Horizons, um prédio elegante de dois andares com um espaço equivalente ao de uma garagem para quatro carros. “Como os supercarros.” Ele faz uma careta, deixando claro que considera supercarros exagerados algo ridículo. “Todo mundo tende a fazer mais, mais, mais.”
Ele geralmente vem de bicicleta de sua casa em Paris, mas hoje, com a agenda cheia, pegou um táxi. Veste jeans Levi’s largos, de um jeito cool, e tênis vintage Nike high-tops que comprou em San Francisco, Califórnia. Tem 40 e poucos anos, é bonito, com um visual de arquiteto desalinhado, cabelo escuro desgrenhado e uma barba cinza-preta irregular.
O Horizons fica logo além dos limites da cidade de Paris, em um subúrbio agradável e banal, com cafés nas esquinas e idosos empurrando carrinhos de compras pelas calçadas em direção ao mercado. Seguindo por um caminho ao ar livre, além da sala de exposição, encontra-se o próprio ateliê: um espaço aberto, iluminado naturalmente, com pisos de concreto, pessoas trabalhando silenciosamente em suas estações, rolos de couro macio espalhados aqui e ali e Ray Charles tocando suavemente no alto-falante de alguém.
Nesse espaço do tamanho de um campo de futebol, acontecem tanto o design (os esboços, as medições, as correções e reesboços e a prototipagem meticulosa) quanto a fabricação (a produção real dos objetos). Essa convivência entre criação e produção é incomum – e muito característica da Hermès. Desde sua fundação, a empresa tem sido gerida principalmente por membros da família que começaram como artesãos, não como contadores, eliminando a barreira que geralmente existe entre os lados comercial e artesanal da maioria das casas de moda.
Atrás de uma pilha de couro e algumas caixas de madeira, encontra-se um Pagani, um dos carros mais caros do mundo. O proprietário contratou o Horizons para “hermesificar” o veículo, e a equipe de Beaufort está há um ano e meio no projeto. Eles removeram os assentos, e os remodelaram para maior conforto e menor peso, e os revestiram com couro tão macio quanto a pele de um bebê; pintaram a carroceria com um verde deslumbrante, nunca antes visto, algo entre uma floresta ao entardecer e o oceano ao amanhecer, e criaram novas rodas esmaltadas em um branco cremoso.
“Eu aceitei este projeto, mas geralmente esses carros têm toneladas de fibra de carbono visível e pintura em degradê”, diz de Beaufort. “Eu disse que, se fizermos isso, quero uma cor lisa, sem metálico, e remover qualquer obstáculo possível. Então, eu disse: ‘Se você não quiser fazer assim, não faremos o carro.” O cliente concordou.
De fato, Beaufort pode escolher os trabalhos que o Horizons realiza. “É bastante raro dizermos não, mas se alguém vier pelos motivos errados, como querer pintar o carro todo de laranja e colocar ‘Hermès’ em tudo… As pessoas têm que pensar na gente como artesãos de altíssimo nível. Não nos veja como uma oficina de branding. Se as pessoas só quiserem que coloquemos nossa marca em seus carros, não faremos. Não nos interessa.”
Thierry Hermès começou costurando à mão arreios de couro para carruagens em 1837. Algumas décadas depois, o imperador Napoleão III iniciou um grande processo de planejamento urbano em Paris, ordenando o alargamento das principais vias da cidade, criando avenidas largas onde as pessoas podiam ver os parisienses mais ricos passeando em carruagens luxuosas. Na França, havia um novo dinheiro em circulação, e a cultura francesa incentivava as pessoas a exibirem suas ascensões sociais por meio de demonstrações de riqueza.
De acordo com o excelente (e longo, com quatro horas de duração) episódio do podcast de negócios Acquired sobre a Hermès, a marca francesa esteve em atividade intensa desde o início. Entre as características que se mantiveram constantes ao longo de sua história, talvez a mais importante seja esta: em vez de usar um grande “H” ou uma cor específica para destacar o valor de um item, a Hermès sempre expressou riqueza e exclusividade por meio da qualidade incomparável de seu artesanato.
Quando Beaufort era menino, crescendo no sul da França, sua família trabalhava na produção de vinhos. Ele adorava a natureza, brincar na rua, andar a cavalo, aprender sobre as uvas e maravilhar-se com a terra que produzia tintos e brancos. Era, como ele descreve, “uma existência agrícola.”
Ele era mais inteligente que a maioria das crianças, mas detestava o trabalho escolar. “Eu era muito ruim no colégio. Não era ruim em matemática e ciências, mas também não era bom”, diz ele. Gostava de desenhar, criar invenções. Lia livros de aventura, sendo seu favorito de todos os tempos O Conde de Monte Cristo, de Alexandre Dumas. “Sou um cara romântico. Gosto de viajar quando leio.”
Seu tio-avô, François de Lamothe, era um renomado designer de produção de filmes e costumava estar sempre por perto, contando ao curioso Axel sobre o trabalho detalhado de criar a estética de um filme.
“Lembro-me de ele ser muito criativo, para cada filme ele inventava um mundo”, diz Beaufort. “Até os móveis precisavam ser feitos e, se ele não conseguia produzi-los ou queria algo original, ele tinha um contato que saía pelo mundo procurando os itens necessários.”
Beaufort estudou arquitetura naval e começou a se envolver com corridas de veleiros. Suas paixões aparentemente desconexas começaram a convergir: a força da natureza, a satisfação da precisão, a aventura, o romantismo e a fusão entre beleza e design. Por volta de 2012, com seus projetos de iates recebendo prêmios e atenção, conheceu Pierre-Alexis Dumas, diretor artístico da Hermès. Ambos tinham mentes criativas e, rapidamente, uma conexão surgiu entre eles. Em menos de um ano, Beaufort estava à frente do Atelier Horizons. Desde o início, ele levou o trabalho tão a sério quanto a arquitetura naval, estabelecendo o objetivo de criar não uma fábrica de bugigangas, mas um estúdio de design de verdade.
No ateliê Horizons, um designer desenha a lápis, parando ocasionalmente para esculpir um pedaço de espuma com uma faca minúscula, enquanto a mesa está marcada com vestígios de designs anteriores, como sonhos antigos. Outro designer interrompe Beaufort para mostrar um esboço, e eles conversam em francês, enquanto Beaufort o observa de forma.
“Ele acabou de me perguntar se seria possível tentar algo diferente, e eu disse que sim, claro. Nós fazemos um design, mas não sou o tipo de chefe autoritário que diz: ‘Respeite meu design absolutamente e não o mude’. Então eu disse: ‘Ok, vamos tentar’. Ao mesmo tempo, sou rigoroso em não comprometer quem eu sou. Nunca faria algo que realmente não amo. O diretor artístico da casa, Pierre-Alexis Dumas, obviamente verifica tudo, mas ele nunca dirá: ‘Faça assim, assim, assim’. Quando pergunto sobre algo que me deixa em dúvida, muitas vezes ele responde: ‘Você já tem a resposta.’”
Enquanto continua andando pelo ateliê, ele explica:
“Esse é um móvel para um avião. Um A390. Um avião grande. Tivemos uma solicitação para fazer um boom box, mas paramos porque era um presente para a namorada de um cliente, e eles terminaram. Eu disse: ‘Não vou cancelar este projeto!’ Então fizemos. Era um toca-discos vertical.”
“Tive que aprender sobre couro. Não sabia nada sobre isso. É engraçado, porque o couro nos barcos historicamente era usado mais para proteção. Nos barcos do início do século XX, todos os blocos eram protegidos com couro. Couro grosso e resistente. Não era ornamental.”
“Fizemos uma mesa de DJ. Agora temos uma coleção de som completa que está sendo lançada. Como este aqui: um alto-falante de 3.200 watts, que alcança até 14 hertz. Um grave superpotente. E vai até 27 mil hertz, o que é muito alto. Isso é algo muito sério.”
“Bolsas. Todas essas prateleiras. Para treinar alguém a fazer uma bolsa, são necessários dois anos.”
“Este é um assento para a mesa de cartas de um barco. E veja como ele se vira – é muito funcional. Você nunca viu isso em um barco, certo? Não se trata apenas de design; trata-se de funcionalidade.”
“Este é um jukebox. Acho que custou 150 mil euros. São necessárias 150 horas só para revesti-lo.”
“As pessoas dizem que essas coisas são caras. Mas elas não são. São custosas. O tempo investido nisso: muitas e muitas e muitas horas de pessoas. Isso é custoso.”
“Horizons, historicamente, está no DNA da Hermès, porque o serviço sob medida já existia na casa de selaria. Os arreios eram feitos sob medida. Sempre tivemos esse serviço, então, de certa forma, o Horizons sempre existiu.”
Todas as segundas-feiras pela manhã, das 9h às 11h, Beaufort inicia sua semana tocando piano por duas horas. Para ele, isso é melhor do que começar os primeiros momentos do primeiro dia da semana respondendo e-mails e resolvendo problemas. “É bastante eficiente, devo dizer”, comenta ele. “Duas horas.” Isso o prepara.
Pode-se dizer que o som que ele produz desloca o silêncio da manhã da mesma forma que o casco de um barco desloca a água, e seus designs — ou, mais precisamente, os produtos que seus designs se tornam — criam um deslocamento no nosso desejo coletivo por, e na apreciação de, coisas boas no mundo. Esse deslocamento eleva essas coisas, fazendo com que transcendam o ordinário.
Nós, humanos, sempre veneramos a beleza estética e o artesanato pelo que são, seja em braceletes de ouro egípcios do primeiro século a.C., em um colete inglês bordado em seda do século XVIII ou no que quer que Beaufort esteja trabalhando nesta semana. Somos atraídos por essas coisas; a Hermès atende a essa necessidade, suprindo-a com beleza. O peso do nosso desejo coletivo é incalculável, é claro, então Axel de Beaufort utiliza uma métrica diferente: horas de trabalho humano. Enquanto percorre o chão de sua “fábrica mágica”, os homens e mulheres estão em suas estações de trabalho, e quando ele fala sobre o valor de jukeboxes e assentos de avião, o faz em termos não de euros, mas do tempo que os artesãos dedicam a costurar cada ponto imperfeito, esculpir um bloco de espuma com uma faca, amassar uma folha de papel e começar de novo em uma página limpa.
“As pessoas não acreditam em quantas horas se leva para fazer um baú.” ele diz, quase sussurrando.