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A imensidão e a beleza do Pará de Dona Onete

Um universo de sons, cores e sabores se abriu durante a realização do documentário "Meu coração neste pedacinho aqui"

Dona Onete, 86 anos, estrela do carimbó (Divulgação/Conspiração)

 

Viajei cinco horas de avião para ir a Belém pelo menos umas nove vezes ao longo dos últimos dois anos. O Pará sempre me traz encantamento — pela natureza, mas também pela cultura. São cinco horas que me transportam para uma outra dimensão do Brasil.

Quando adolescente, ouvi algumas vezes as pessoas dizerem que eu parecia paraense. Não sei até hoje o que isso significa, mas minha bisavó era filha de maranhenses. A família da Dona Onete também tem uma parte do Maranhão — são estados vizinhos, afinal de contas.

 

(Divulgação/Conspiração)

 

A primeira vez que fui ao Pará foi em 1989, para Altamira, e vi a indígena caiapó Tuíre empunhar o facão na cara do diretor da Eletrobras, em protesto contra a construção da usina Kararaô — que demorou mais de 20 anos para ser concluída e que hoje é Belo Monte. Lembro de atravessar o Xingu com meu primeiro amigo paraense, nadando até a ilha de Arapujá, que fica em frente à cidade. Lembro do medo que senti das piranhas que nadam no rio, mas fui, com a cara e a coragem.

Foi a primeira vez que tive contato com os povos originários, a primeira vez que comi cupuaçu e a primeira — e única — vez que fui a um garimpo e dormi numa rede entre garimpeiros, com um porco que eu tinha visto ser morto, pendurado ao meu lado. Passei duas semanas em Altamira, na casa da Teca, uma amiga médica, e fui totalmente devorada pelos piums, um mosquito danado que existe na região. Eu tinha 19 anos.

 

(Divulgação/Conspiração)

 

Já em 2012, voltei com minhas filhas para Alter do Chão e naveguei pelos rios Arapiuns e Tapajós. Foi lindo mostrar para as pequenas o encontro das águas do Amazonas e do Tapajós. Vê-las se espantar com os botos, com a floresta frondosa, as praias de areia branca em meio a rios de águas ácidas — e, por isso, quase sem mosquitos — e cor de Coca-Cola.

Em 2018, fomos a Anavilhanas e subimos o Rio Negro, mas isso já é no estado do Amazonas, não do Pará.

 

(Divulgação/Conspiração)

 

E, finalmente, em 2023, comecei a filmar um documentário sobre a vida e a obra de uma das maiores cantoras e compositoras deste país — uma mulher com uma história única e cheia de reviravoltas. Meu desejo era mergulhar na vida dessa paraense que se transformou em uma artista conhecida internacionalmente aos 72 anos de idade. Queria entender sua música — o carimbó chamegado e seus boleros românticos — e o glossário de palavras que suas canções continham. Um universo tão diferente do meu.

Foi através do olhar dela, e de seus amigos e parentes, que entendi Belém, que até então só conhecia de passagem.

 

(Divulgação/Conspiração)

 

O banzeiro das águas, as chuvas de lágrimas, o calor, os rios marrons, as sumaúmas gigantes — entre tantas maravilhas da natureza. Me deliciei com o bacuri — de casca dourada, frutinha deliciosa, carnuda, que faz um sorvete incrível — e visitei o mercado do Ver-o-Peso, onde se vende a melhor castanha-do-pará, bem fresquinha.

Conheci o estúdio onde Dona Onete gravou alguns de seus álbuns com o produtor Assis, numa casa colonial da Belém antiga. Filmamos no bairro da Pedreira, onde o carimbó do Sancari comeu solto. Fomos ao Jurunas, bairro onde nasceu Gaby Amarantos, que me levou ao Potentes do Brega, lugar onde se dança junto, de um jeito rápido que eu nunca havia visto.

Já o meu velho amigo pernambucano Geraldinho Magalhães, apaixonado — como eu — por Dona Onete, acabou se tornando um de seus empresários e grande conhecedor de Belém. Ele me levou ao Boteco do Bacú, onde comi um tacacá delicioso, prato montado dentro de uma cuia de cuieira: primeiro a goma, depois o tucupi quente, o jambu e, por cima, os camarões.

 

(Divulgação/Conspiração)

 

Inesquecível o pirarucu — peixe de rio — defumado do Remanso do Peixe. Já o Marcel Arede e a Vivi Chaves, paraenses e também empresários de Dona Onete, me levaram para comer o bolinho de piracuí do Saulo e me apresentaram a um dos maiores fotógrafos do Brasil, Luiz Braga.

 

(Divulgação/Conspiração)

 

Dona Onete me levou de balsa até Igarapé-Miri, onde morou por mais de 30 anos. Lá experimentei o açaí branco na fazenda de um ex-aluno dela. Ela me apresentou o Boi de Banda da Mestra Maria Antônia e me fez navegar pelo Rio das Flores, onde passava as férias com a avó quando era pequena.

Em Mocajuba, na beira do Rio Tocantins, Dona Onete me fez ouvir o Bangue, ritmo tradicional da região que, em suas letras, tira sarro das desventuras da vida.

 

(Divulgação/Conspiração)

 

Dona Onete cantou o que é o pitiú, aquele cheiro de peixe do mercado Ver-o-Peso, onde a garça namoradeira encontra o malandro urubu. Conheci a flor da jamburana, aquela que faz tremer tudo; a palmeira do buriti; a canarana e o ingá da beira dos igarapés.

No Jurunas, Mãe Isabel me contou a história das princesas turcas que vieram da África, atravessaram um portal em Gibraltar e chegaram ao Maranhão, onde nasceu o Tambor de Mina, religião de matriz africana que tem, na sua mitologia, Erundina, Jarina e Mariana, que na floresta encontraram a cabocla Jurema. Conheci a rainha da Amazônia, a Nazinha, e visitei a casa das costureiras Tia Salu e Tia Benedita.

Vou continuar a navegar pela Baía do Guajará, porque um lugar leva a outro, um sabor leva a outro, um amigo leva a outro — e, de encantaria em encantaria, de igarapé em igarapé, através das canções, quero continuar a descobrir a imensidão e a beleza do Pará de Dona Onete.

 

Mini Kerti é cineasta. Dirigiu, entre outros, o documentário “Refavela 40”, indicado ao Emmy, e a premiada série “Sob pressão”. Seu mais recente trabalho é o documentário “Dona Onete – Meu coração neste pedacinho aqui”, uma produção Conspiração, Hysteria e Canal Brasil.

 

 

Mini e a estrela do seu documentário (Divulgação/Conspiração)