Duas crianças brincando no quintal com figuras de papel. Sem a mãe por perto, são chamados a atenção pelo pai: no quarto, Remi e Akin admiram com certa curiosidade este homem se arrumar para o trabalho. Mas, diferente dos outros dias, hoje eles podem ir a Lagos, matar um pouco a saudade de estarem juntos. Ambientado em 1993 numa Nigéria borbulhando com a primeira eleição democrática desde o golpe militar de 1983, A sombra do meu pai é um excelente drama familiar que mistura o contexto político com o particular em uma história sobre vulnerabilidade e amor.
O primeiro longa-metragem de Akinola Davies Jr foi vencedor do prêmio Caméra d’Or no Festival de Cannes, na seleção Un Certain Regard – sendo o primeiro filme Nigeriano selecionado para a competição oficial. A história é brevemente inspirada na infância do diretor e de seu irmão, Wale Davies, que assina o roteiro. “Meu irmão teve a ideia em um workshop criativo, escrever sobre como seria passar um dia com o nosso pai, falecido quando éramos crianças”, conta Akinola em entrevista à Esquire Brasil, durante a sua passagem pelo Brasil para divulgar o filme na Mostra de São Paulo. “Ele me mandou o roteiro do que seria um curta. Chorei uma hora na cama.”
Assim como Folarin, personagem vivido pelo ótimo Sope Dirisu, o pai de Akinola era visto como carismático e confiante. “E no roteiro do meu irmão, ele aparecia como um homem suave, inseguro, vulnerável. Isso me quebrou.” O roteiro ficou engavetado até a pandemia. Depois de lançar um curta-metragem autoral, Lizard (2020), sentiu que era hora de testar um projeto maior. “Levou um pouco de persuasão até ele topar fazer isso comigo”, ri, “mas tínhamos um trabalho longo pela frente. Mantivemos a idade dos personagens igual a nossa em 1993, e incrementamos com pesquisa histórica para conseguir entrelaçar política e família.” A época, segundo Akinola, era propícia para tratar de temas como paternidade, irmandade e nação.

Desde o caminho pelo interior até a chegada na agitada Lagos, somos introduzidos de maneira sutil por essa atmosfera sócio-política. Um jornal aqui, uma discussão calorosa ali, e percebe-se o quanto Folarin é politizado e torce para o resultado democrático. “Como temos dupla nacionalidade, nascidos em Londres mas criados em Lagos, boa parte sob a ditadura militar, crescemos politizados. Com essa base, miramos em outras camadas importantes: como a mídia se comportava? Quais jornais tinham vieses? Como as crianças percebem essa dinâmica? E por aí vai…”, explica.
O longo processo, misturado com as memórias pessoais, deu certa liberdade criativa para eles preencherem lacunas. “Escrever com meu irmão nos permitiu escolher o quão honestos seríamos. Sabemos quem somos e como nos projetamos publicamente versus quem somos em casa. Poderíamos vender uma masculinidade ‘perfeita’, mas os homens são falhos, atrapalhados, erram. Queríamos que o filme também fosse incompleto, com buracos, para o público interagir a partir deles”, explica, sobre o aspecto quase onírico da narrativa.
Como A sombra do meu pai se passa ao longo de um único dia, o diretor faz escolhas criativas que conduzem a audiência por essa relação familiar a partir do olhar dos garotos. Portanto, nem tudo é explicado, nem tudo precisa de explicação. Um exemplo é o motivo da ida a Lagos, a cobrança de um salário que nunca foi pago por um serviço feito há seis meses. A mãe também aparece em momentos de dissociação dos pequenos, como uma visão de conforto em meio ao caos.
A montagem, a direção de fotografia e a direção de arte também auxiliam esta narrativa a se tornar uma imersão afetiva entre memória subjetiva e memória social. O texto verossímil do roteiro ainda engrandece a atuação do elenco diminuto e nos coloca no coração desse homem e seus filhos. “Eu não estudei cinema, mas já trabalhei em quase todos os departamentos. E este era meu primeiro longa, tinha um senso de responsabilidade, então quis juntar uma equipe de confiança, que trouxesse outras referências para a tela.” Com outros colaboradores que estavam ali em suas respectivas primeiras experiências, o ambiente criativo estava a serviço da história. “Essa ‘ingenuidade entusiasmada’ de um primeiro filme deu energia. E o sucesso do filme também precisa recair sobre eles, porque merecem.”

Akinola vem de um background criativo, trabalhou com grandes marcas de moda, como Louis Vuitton, Gucci e Moncler, fazendo campanhas e fashion films – além de ter assinado alguns videoclipes. E ele fez questão de contratar pares com formações tão multifacetadas quanto a sua. “Perspectivas diversas reduzem pontos cegos. Num mundo saturado de informação, um filme com muitas perspectivas captura uma visão mais rica da vida.”
Em uma das cenas centrais, quando Folarin leva Remi e Akin para a praia, é possível sentir a brisa do mar, a textura da água, o afeto entre os três. Essa camada de texturas, segundo o cineasta, só foi possível ser alcançada justamente pela diversidade criativa no set. “As texturas fazem de Lagos um personagem. Quis que nigerianos reconhecessem a cidade, sem caricatura – olhar para o banal com atenção. A moda ajuda na estética, no enquadramento; ‘cada quadro é uma pintura.’”
Outra característica que salta aos olhos é o talento dos garotos, interpretados por irmãos na vida real, Godwin Egbo e Chibuike Marvelous. Em seus primeiros papéis, eles acrescentam à generosidade de Sope e do próprio diretor para alcançarem essa meditação bonita e sensível sobre a masculinidade.