Ana Lima Cecilio não dorme mais do que seis horas por dia. Acorda às 5h30 e começa a ler. Ao longo do dia, aproveita qualquer momento: lê andando, cozinhando, no ônibus. À noite, não dorme sem ler mais um tanto.
No início de 2022, resolveu contabilizar quantos títulos consumiria naquele ano. Deu 130. Mais do que dez por mês, portanto. “Não vejo novela, vejo filme no cinema, não tenho paciência para séries. Eu leio o tempo todo”, diz.
É uma “superleitora”, como alguns admiradores a classificam. Isso ajuda a explicar por que ela será, pelo segundo ano seguido, a curadora da Flip, a Festa Literária Internacional de Paraty, a principal do gênero no país. E, também, porque está fazendo a newsletter sobre livros mais badalada do momento.
A Flip, programada para ocorrer entre 30 de julho e 3 de agosto na cidade histórica fluminense, está de volta ao período do ano em que era realizada desde a estreia, em 2003. A pandemia a jogou para o fim do ano, e o ajuste foi sendo feito aos poucos.
A editora Ana Lima Cecilio, paulista nascida em Campinas há 47 anos, formada em filosofia, estreou no posto de curadora em 2024, teve o trabalho muito elogiado pela imprensa e satisfez Mauro Munhoz, diretor artístico da festa. “Ana tem duas décadas de experiência no mercado editorial e sensibilidade para saber onde está o leitor. Tem muito prazer no trabalho. É o encontro do talento com a vocação”, afirma ele, para quem a edição do ano passado “foi uma celebração da literatura”.
O evento vinha de um período mais voltado para questões identitárias, debatendo temas relacionados, sobretudo, a mulheres, negros, indígenas. Foi uma busca de ampliar a diversidade, pois a programação chegou a ter só autoras e autores brancos. “A Flip pode refletir os desafios do mundo contemporâneo por meio da lente da literatura”, entende Munhoz.
Para Ana, a festa “estava passando por um processo necessário, um olhar mais acadêmico, para dar conta das questões identitárias”. Mas acredita que ela tenha chegado na hora certa, especialmente porque, após 20 anos trabalhando em editoras, tinha passado os últimos três na livraria online Dois Pontos.
“Difícil, nesses três anos, que tenha passado um livro que eu não soubesse o que era. Quando Mauro me chamou, eu estava muito afiada. Sabia o que vendia, o que não vendia, o que as editoras pequenas estavam fazendo, no que as grandes estavam de olho. Foi muito oportuno”, afirma ela, “flipeira” desde as primeiras edições, seja profissionalmente, seja só para acompanhar.
Curador por três anos da Flip (2014 a 2016), o jornalista e editor Paulo Werneck, criador da revista de livros “451” e da Feira do Livro – que acontece todo mês de junho em São Paulo –, diz que Ana já estava destinada a ser a curadora, ao contrário do que ela mesma pensa. “Era uma bola que estava quicando para ela bater. Ana faz uma Flip gostosa, bem-humorada. A Flip pode ser erudita e boêmia. Não pode ser só erudita ou só boêmia”, acredita Werneck.
A curadora Ana Lima Cecilio culpa o celular e a cultura da rolagem de telas pela queda acentuada do número de leitores no Brasil; o país perdeu quase 7 milhões de leitores em cinco anos.
Outro ex-curador da Flip (2007), Cassiano Elek Machado, hoje diretor editorial do grupo Record, ressalta a capacidade que Ana tem de combinar partes diferentes do universo dos livros. “Ela escala editoras grandes e pequenas, autores engajados e de sucesso, e isso cria um leque amplo, o que é positivo para o festival”, destaca ele, dando como exemplo o seu próprio grupo: teve a best-seller Carla Madeira em 2024 e terá o cultuado Nei Lopes neste ano.
“Rata de livraria”, como se identifica, Ana tem agradado também o setor livreiro. “Quando penso na Ana, penso em acolhimento e afeto. E nada poderia ser melhor para alguém que vá fazer a curadoria da Flip”, diz Rui Campos, um dos sócios da Livraria da Travessa, que tem unidades no Rio, em São Paulo e Brasília e sempre monta uma loja em Paraty. “Ela tem uma visão completa da importância da leitura, da literatura, dos livros e das livrarias na sociedade. E sabe transmitir esse afeto por ser ela mesma uma apaixonada. Não há bom livreiro que não seja leitor da newsletter dela.”
A “Lábia”, como se chama a newsletter, foi criada em janeiro passado na plataforma Substack, circula todas as segundas-feiras, já tem mais de 6.000 seguidores e alcance de 40 mil leitores por edição (nem todo leitor é seguidor). São comentários abalizados e divertidos sobre alguns livros, não necessariamente lançamentos. Ela escreve os textos aos domingos.
“Eu tenho esse jeito compulsivo de ler. E comecei a ficar perdida nas leituras. Aí passei a fazer breves anotações e a falar com os amigos. Aí um amigo me falou: ‘Sinceramente, acho uma palhaçada você não ter uma newsletter’”, conta ela, assegurando que não esperava o sucesso. Mesmo sem cobrar nada, já recebe doações de 110 fãs.
Não há quem conheça Ana que não destaque o humor como sua característica mais marcante. Um de seus amigos mais próximos, o poeta e cronista Fabrício Corsaletti, lembra que a relação começou mal. Ele entrou um dia, no final da década de 1990, no sebo Sagarana, em São Paulo, e o livreiro e escritor Evandro Affonso Ferreira o apresentou a Ana. Ela estava lendo um livro de João Antônio e comentou como a edição da Cosac Naify era bonita. “Eu disse que não gostava de livro com orelha grande. Tempos depois, ela me contou o que pensou naquela hora: ‘Que moleque idiota!’”, conta ele, parceiro de muitas risadas com a amiga. “É uma das pessoas com quem eu mais rio. É uma grande contadora de histórias. Leio a ‘Lábia’ como se fossem crônicas. E é a pessoa com mais facilidade que eu conheço para fazer trocadilhos.”
Rita Palmeira, curadora da livraria Megafauna, em São Paulo, diz que tem com Ana uma “parceria pândego-profissional-afetiva”. A parte pândega vem das risadas. “Ela é gaiata, inteligente, rápida”, exalta. A parte profissional vem, por exemplo, das sugestões que a amiga dá para o podcast da Megafauna, o Livros no Centro. E tanto profissional quanto afetiva foi “Queimada”, uma espécie de revista que nasceu no Instagram na pandemia, para salvar as duas e outras da angústia, e que teve uma segunda temporada perto das eleições de 2022. Ana tinha uma coluna intitulada “A razão do meu mau humor”. “Ana é do tipo ‘vamos lá, vamos fazer’”, diz Rita.
“Tenho muita dificuldade com autor que não tem humor”, afirma a curadora da Flip. “Acho que Dostoievski tem seu humor, Tolstoi tem muito humor, do jeito dele. É claro que não é o Millôr Fernandes. O Kafka tem humor. Quem não tem? O Beckett. Não se trata de ser comédia. É uma postura, um jeito de ver as coisas pelo avesso.”
Não por acaso, os dois autores que escolheu para homenagear na Flip eram bem-humorados. O do ano passado, João do Rio (1881–1921), pseudônimo do carioca Paulo Barreto, foi um jornalista e cronista de estilo e temas originais, frequentemente tratados com fino humor.
O deste ano é o curitibano Paulo Leminski (1944–1989). Publicou um cultuado romance de experimentação, “Catatau”, mas ficou mais conhecido como poeta. Muitas vezes tratado como autor marginal, virou best-seller apenas em 2013, quando “Toda poesia” (Companhia das Letras) vendeu mais de 200 mil exemplares. “É um poeta que quis fazer a literatura chegar mais perto das pessoas”, diz Ana. “É um supercomunicador. Não querendo dizer que o Leminski é o Chacrinha, mas ele é impressionante. Usava trocadilho, ditado, letra de música e fazia poesia a partir disso.”
Ela decidiu dar muito espaço na Flip de 2025 para a poesia, que ficou de fora da programação principal do ano passado. “A gente fala que o Brasil não lê poesia, que poesia não vende, mas nós somos o país da canção. De Cartola, Nelson Cavaquinho, Caetano, Chico e até Marília Mendonça. A gente se emociona com letras de música. Leminski sacou isso de um jeito muito cristalino”, destaca ela. O poeta compôs mais de cem canções, sozinho ou em parceria.
Além do humor, Ana pratica a boemia. Mesmo lendo tanto, ainda encontra tempo para beber com os amigos, a maioria deles também bons leitores. Um é Reinaldo Moraes, autor do já clássico romance “Pornopopeia”. Conheceram-se no início dos anos 2000 na Cantina do Pasquale, frequentada por escritores e intelectuais. “Ana costumava chegar sozinha e chamava atenção, porque era muito mais nova do que a gente”, recorda Moraes, hoje com 75 anos. “Ficava no balcão farejando uma oportunidade de se sentar a uma mesa e participar das conversas. E ela já tinha um repertório de histórias, muitas delas ligadas à literatura, que usava como moeda de troca. Sei que soa machista, mas era um amigo com a vantagem de ser uma menina bonita, o que é difícil de se encontrar num amigo.”
Divertidas também costumam ser suas postagens no Instagram, onde é bastante ativa. Diz que queria ser menos, para poder se concentrar mais no trabalho. “Eu preciso ter uma disciplina de deixar o celular longe. Porque ele apita, você cai nuns buracos de coelho e, quando vê, passou uma hora e não fez nada a não ser ver receitas que não vai fazer.”
Ela culpa o celular e a “cultura do scroll” (o nosso costume de ficar rolando as telas) pela queda acentuada do número de leitores. Segundo a última pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, o país perdeu 6,7 milhões de leitores entre 2019 e 2024. Ana conta que seu filho Francisco, de 16 anos, gosta de ler, mas há o desafio de driblar a sedução do celular.
O humor dela sofreu forte abalo durante a pandemia. Perdeu o pai do seu filho – de quem era separada – em 24 de dezembro de 2020, de Covid. Quatro meses depois, perdeu a mãe, de câncer. “Foram perdas muito dolorosas, um luto absurdo. E fechada em casa, sem poder estar com as pessoas, com meu filho adolescente”, recorda ela, para quem ainda faltam livros que tratem do período. Exceções que aponta são “Triste cuíca”, de Julia Wähmann, e “A crônica não mata”, de Luís Henrique Pellanda.
Os livros chegaram à sua vida em casa. Os pais, ambos médicos, ocupavam boa parte de suas folgas lendo. O costume despertava a atenção da menina. Aos 10 anos, foi apresentada às histórias de Monteiro Lobato. “Ele trata a criança como leitor adulto, com inteligência, sem lição de moral. Ensina que livro é aventura, é aprendizado, sem ser chato. Foi essencial. Minha mãe leu uma vez a obra inteira para mim, depois eu li de novo e, mais tarde, li para o meu filho”, conta.
Como não havia o segmento conhecido hoje como “jovem adulto”, ela pulou na adolescência para livros indicados pela mãe, como os de Ignácio de Loyola Brandão e J.D. Salinger. “Comecei a ganhar musculatura”, diz.
Na hora do vestibular, ficou em dúvida entre Letras e História. Escolheu Filosofia e passou para a USP (Universidade de São Paulo), aos 18 anos. “Meu pai disse: ‘A gente te conhece, você vai fazer um ano e desistir. Então, faz filosofia, porque você vai ler um Platão, um Aristóteles, já está bom’”, recorda, rindo. Mudou-se para São Paulo e nunca mais voltou a morar em Campinas.
Mas ela adorou o curso. Seu amor pela leitura engrenou de vez. Sempre de olho na literatura, fez iniciação científica sobre o romance filosófico do século 18, orientada pelo professor Renato Janine Ribeiro. Ao se formar, aos 23 anos, ingressou logo no mercado editorial. Não seguiu a vida acadêmica. “Eu tinha vontade de trabalhar. Usar um grampeador, mandar uns e-mails. Gosto de conversar, e a vida acadêmica é muito solitária”, explica.
Um amigo, João Eduardo Pedroso Oliveira, abriu a editora Labortexto. Eram apenas três pessoas, e ela fazia de tudo um pouco. Já a primeira aposta do editor deu certo: Capão pecado, de Ferréz, que foi um grande sucesso. Ficou até 2003.
Passou pela editora Cubzac e, após dois anos como assessora de comunicação da Cosac Naify, integrou, em 2007 e 2008, a equipe responsável por editar em quatro livros as obras completas de Machado de Assis para a Nova Aguilar. Cuidou do volume dedicado aos contos e, também, do teatro e da correspondência. Ao seu lado, Rodrigo Lacerda, Aluizio Leite e aquela que considera sua mestra maior na profissão, Heloisa Jahn. Voltaria à Nova Aguilar em 2015, convidada por Sebastião Lacerda, para trabalhar no Teatro Completo de William Shakespeare.
Entre 2012 e 2016, realizou a função que lhe deu maior visibilidade: coordenadora editorial da Biblioteca Azul, selo da Globo Livros voltado para clássicos da literatura e obras contemporâneas de ficção. Reeditou, por exemplo, Balzac, Aldous Huxley, Ray Bradbury e Agatha Christie. E seu maior feito, citado até hoje por todos do meio dos livros: descobriu Elena Ferrante.
Provável pseudônimo de Anita Raja (ela não assume), a misteriosa Ferrante criou uma obra cultuada em todo o mundo. Sua empreitada maior é a chamada “tetralogia napolitana”, a começar por A amiga genial.
“Eu tinha viajado para Nova York, estava indo em livrarias e percebi que tinha um fenômeno, a Ferrante fever. Comprei o livro, passei a noite lendo e vi que era maravilhoso”, conta Ana. Quando voltou ao Brasil, insistiu para que seu chefe comprasse toda a tetralogia de uma autora desconhecida por aqui. Ele reagiu: “Você está maluca!”. Ela apelou: “Nunca mais te peço nada”. O resto é história. A cada volume lançado, os fãs pediam mais. Todos foram traduzidos por Maurício Santana Dias. “Acho que foi o único sucesso que eu editei. O tal ‘sucesso de público e crítica’”, diverte-se ela.
Ficou respeitada ao editar dez volumes da Comédia humana, de Balzac, na tradução de Paulo Rónai. Os outros sete a Globo publicou apenas em versão digital, para tristeza dela. E teve outro encontro fundamental: com a obra da paulista Hilda Hilst (1930–2004). Foi responsável por aumentar em muito o alcance da poeta e prosadora, tida por si mesma como incompreensível para o grande público.
“Resolvi lançar primeiro o livro de entrevistas dela, Eu fico besta quando me entendem, ótima porta de entrada. Depois juntei quatro livros em que ela dizia falar ‘grossas bandalheiras’: Pornô Chic. Milhares de leitores chegaram a Hilda porque botamos essa cara pop nela. Quando foi homenageada da Flip [em 2018], virou leitura de jovens”, orgulha-se ela, que viu muitos narizes acadêmicos tortos para sua proposta popularizante.
Anunciou-se que Ana escreveria uma biografia de Hilst. Ela começou a pesquisa, mas os problemas da pandemia e as dificuldades inerentes à missão a fizeram desistir. O projeto está hoje com outra pessoa na Companhia das Letras, editora que publica parte da obra de Hilst. Na Biblioteca Azul, Ana ainda teve a oportunidade de voltar à infância: reeditou toda a obra de Monteiro Lobato.
Para quem aguarda a sua estreia como autora literária, ela não dá qualquer esperança. “Sou abençoada por não ter talento para escrever ficção. O que você é como leitora é um pouco a sua autoria. Eu sou muito orgulhosa da minha obra de leitora”, diz.
Entre 2018 e 2021, foi coordenadora editorial da Carambaia, na qual teve a experiência de fazer livros quase artesanais, de cerca de mil exemplares. Seja trabalhando em grandes editoras ou em pequenas, Ana sempre se vale dos ensinamentos de Heloisa Jahn e dos de outra referência: Maria Helena Arrigucci (1938–2013), a Lena. Conheceram-se na Cosac Naify e nunca se afastaram.
“A Lena teve imensa influência profissional sobre mim. Ela era uma obsessiva, uma cuidadora da página impressa, adorava diagramação, que ela chamava de ‘belezura’”, recorda a amiga. “Também sabia muito de literatura italiana. Ela me apresentou autores fundamentais, como Elio Vittorini, que ela traduziu lindamente, e Natalia Ginzburg, que virou a minha preferida e que também tem essa mistura de ternura e braveza que a Lena tinha.”
Por sua função na Flip, Ana recebe de 20 a 30 livros por semana. Dispensa os que não lhe apetecem, como os de autoajuda, e lê o máximo que pode dos outros. Parte é doada para sebos, comunidades e organizações como o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra). “Doo livro bom. Livro tem que circular”, ensina a “super leitora”.