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Marcello Dantas: o curador de exposições blockbuster com nomes da arte como Marina Abramovic a Ai Weiwei

Dantas se considera um diplomata no ofício de conciliar poéticas e práticas distintas, construindo pontes entre artistas e público por meio de uma miríade de projetos interdisciplinares que, não raro, ele conceitua e executa simultaneamente

Para alguém que participou da gênese do Museu da Língua Portuguesa, trota-mundos talvez seja uma boa expressão para descrever o carioca Marcello Dantas. Em sua acepção mais elogiosa, ressalte-se. Antes de iniciar a entrevista em São Paulo com a reportagem da Esquire Brasil, na Casa Bradesco, instituição de que é diretor artístico desde o ano passado, Dantas elencava a série de viagens que teria início naquele mesmo dia. Iria para Nova York e, logo em seguida, para Jeddah, na Arábia Saudita.

No país do Oriente Médio, onde em 2024 participou do projeto Desert X AlUla, festival que reúne obras de arte ao ar livre, no deserto, Dantas iria visitar a Bienal de Artes Islâmicas. A lista de próximos destinos seguia com Abu Dhabi, Paris, Londres, Lisboa e, finalmente, São Paulo, quase sua megalópole-dormitório, onde mora desde 2004. A razão de ser dessas andanças é, por assim dizer, simples: em média, Dantas atua simultaneamente em mais de uma dezena de projetos, que guardam pouca ou nenhuma similaridade aparente entre si.

No entanto, chamá-lo de polivalente pode redundar numa opinião reducionista ou mal informada. A multiplicidade de projetos de que Dantas participa é fato, mas não é o volume, tampouco uma ideia de versatilidade que caracteriza seus modi pensandi e operandi. Os trabalhos que ele conceitua e executa partem do que ele chama de sua observação “sobre a latência do mundo”, sobre “o que está pulsando”. E é nessa frequência que suas criações vibram.

Em cartaz até 9 de março, a exposição de estreia da Casa Bradesco, na Cidade Matarazzo, foi Inflamação, de Anish Kapoor. A relevância do artista indo-britânico no cenário da arte contemporânea mundial é incontestável. Mas a escolha de Kapoor para inaugurar o espaço foi “muito menos ligada a obras do que a situações”, pondera Dantas. 

“A ideia de inflamação é contemporânea. Todos estamos metabolicamente inflamados, fisicamente inflamados, socialmente inflamados, e o planeta está inflamado”, diz. “E as criações de Kapoor ocupam de tal forma o ambiente que elas te seguem, te ofuscam, estão por todos os lados. Mas, o que é essa situação? Isso está sendo colocado dentro de um hospital [o Umberto Primo, erguido em 1904 e desativado em 1993]. Então, o placement daquelas obras, nesse lugar, é uma decisão curatorial. É ela que produz o efeito sobre o público e constitui a direção artística.”

Marcello Dantas nasceu em 1968, no Rio de Janeiro. Estudou Relações Internacionais em Brasília, História da Arte em Florença e graduou-se em Filme e Televisão na New York University. É membro do conselho de várias entidades internacionais e mentor de artes visuais do Art Institute of Chicago, também nos EUA. Esteve por trás da concepção de diversas instituições, entre eles o Museu da Língua Portuguesa – que dirigiu de 2001 a 2006 –, e a Japan House, ambos em São Paulo. É pai de três meninas, avô de dois netos.

 

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Marcello Dantas (Foto: Bonin)

 

Nas últimas décadas, esteve à frente de projetos arrasa-quarteirão – em que faz convergir arte e tecnologia – de grande impacto de crítica e sobretudo de público. Em 2012, realizou em São Paulo a mostra Corpos presentes, do britânico Antony Gormley. Parte das obras ficou abrigada no Centro Cultural Banco do Brasil. Mas um conjunto de mais de 30 esculturas de homens nus, em tamanho natural, espalhadas nos topos de prédios da cidade, fez com que a exposição alcançasse milhões de pessoas, antes mesmo de sua itinerância no Rio e em Brasília.

Em 2018, foi a vez de Dantas fazer história com uma exposição do artista, ativista e dissidente chinês Ai Weiwei. De caráter retrospectivo, Raiz, que resultou em um livro homônimo, foi montada na Oca, em São Paulo, e considerada a maior mostra até então feita por Weiwei no mundo. Fez itinerância em Curitiba, Belo Horizonte e Rio. Ganhou o prêmio da APCA de melhor exposição daquele ano, e o jornal inglês The Art Newspaper listou Raiz como a terceira mostra mais vista no mundo em 2019.

Em entrevista à Esquire Brasil, Ai Weiwei, que em novembro, em Manchester, esteve envolvido no espetáculo operístico Ark, de Laurie Anderson, com participação de Dantas – afirma que o empenho e o zelo do brasileiro o “encorajaram a empreender trabalhos mais desafiadores”. Weiwei destacou que Dantas é um curador muito apaixonado, imaginativo e atencioso, que conhece muitos artistas, é muito ativo e engajado em diversas atividades relacionadas à arte: “Ele é fácil de interagir e resolve problemas”, ressalta Weiwei. “Sempre há vários desafios, seja trabalhando no Brasil ou em outros lugares, mas ele adota uma abordagem realista e prática para ajudar os artistas a solucionar questões. Isso envolve estabelecer conexões locais, já que ele está amplamente conectado com artistas e artesãos brasileiros locais e a própria cultura do país. Tudo isso foi importante para minha exposição no Brasil, que não teria tido seus aspectos mais estimulantes sem a sua participação.” 

Ainda em 2018, Dantas conheceu o chileno Iván Navarro quando o artista fez uma exposição individual no MACBA, em Buenos Aires. Segundo Navarro, desde o início Dantas demonstrou ser uma pessoa muito gentil e interessada no que fazia. Depois ele visitou Navarro em seu estúdio em Nova York, onde puderam conversar mais a fundo para finalmente colaborar na exposição Exfinito, que o brasileiro levaria em 2021 ao Farol Santander em São Paulo. Da experiência, ficou uma amizade, “uma relação muito familiar”, diz o chileno.

“Quanto à sua forma de trabalhar, ela é muito otimista, livre e aberta, respeita muito o pensamento do artista”, conta. “Marcello organiza a sua estrutura de trabalho que, em última análise, enquadra o projeto total. Assim, ao contrário de muitos curadores, ele convida você a pensar junto para criar um projeto, sem impor suas ideias. Pelo contrário: primeiro, ele ouve; depois constrói o discurso que nos dará forma e substância”, diz Navarro.

Em 2022, Dantas esteve à frente da curadoria da 13ª Bienal do Mercosul, em 11 espaços de Porto Alegre, propondo reflexões acerca do tema Trauma, sonho e fuga”. Entre os mais de 90 artistas selecionados, de 20 países, estavam o catalão Jaume Plensa e a sérvia Marina Abramovic, referênca mundial da arte performática. No MARGS, Abramovic apresentou Seven Deaths, projeto operístico em que recriou em vídeo cenas de mortes da cantora greco-americana Maria Callas.

À Esquire Brasil, Marina também ressalta como Dantas acompanha o processo criativo dos trabalhos de que faz curadoria. Elabora o conceito, dá sua opinião, dialoga com os artistas e, diz ela, ao mesmo tempo dá liberdade para o desenvolvimento do projeto. 

“Ao trabalharmos juntos, ele se tornou um amigo, e isso me deu a possibilidade de compreender a profundidade do meu trabalho, algo que os curadores que apenas organizam mostras nunca poderiam acessar ou compreender”, afirma. “Por causa de todas essas qualidades, eu pessoalmente adoro trabalhar com ele e aguardo com expectativa a continuação de nossas futuras colaborações.” 

O espanhol Jaume Plensa faz coro com Marina. Em entrevista à Esquire Brasil, o artista, com quem Dantas trabalhou na exposição monográfica Invisível e Indivisível, em 2022, no Museu Oscar Niemeyer, ressalta que, de sua colaboração com o brasileiro em vários projetos, nasceu uma amizade. Segundo ele, os trabalhos permitiram a ambos “voar juntos em direção a ideias e aventuras visuais que abriram novas portas em nossas respectivas práticas”. “É sempre um prazer trocar energias com alguém como ele pela sua extraordinária capacidade de criar a estrutura mais adequada para desenvolver as próprias ideias”, conclui Plensa. Em tempo: no dia 2 de abril, às 16h, Plensa estará na SP-Arte para um bate-papo com Marcello Dantas, dentro da programação oficial da feira.

  

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Marcello Dantas (Foto: Bonin)

 

Dantas fundou sua produtora, a Magnetoscópio, há mais de 30 anos. Em seu site, a seção de trabalhos monográficos traz uma miríade de grandes nomes internacionais das artes – afora os já citados, vemos Bill Viola, Michelangelo Pistoletto e Rebecca Horn, entre outros.

A extensa lista pode induzir o leitor ao erro de que Dantas não trabalha, ou trabalhou pouco com nomes nacionais. Uma de suas produções mais populares foi Portinari raros, montada em 2022 no CCBB Rio. No ano passado, Viagem ao centro da Terra, de Denise Milan, foi levada ao Farol Santander, em São Paulo. Dantas ainda atuava como artista, em meados dos anos 1990, quando a paulistana Laura Vinci o conheceu, numa das edições do projeto de intervenções urbanas Arte/Cidade.

Vinci é conhecida por suas esculturas, instalações de grande porte e intervenções, além de colaborações com o Teatro Oficina, de José Celso Martinez Corrêa. Sob curadoria de Dantas, esteve em dois projetos: em 2002, com a individual Estados, no Centro Cultural Banco do Brasil de São Paulo; e em 2014, quando ele a convidou para a coletiva Ouro – um fio que costura a arte do Brasil, que comemorou os 70 anos da H.Stern e os 25, do CCBB Rio.

“O Marcello é muito parceiro do artista”, atesta Laura. “Como produtor, ele compra a nossa ideia, ajuda muito no sentido não só de estimular, de fazer a coisa acontecer, mas também de questionar. Ele tem a sensibilidade e o espírito de artista que o tornam um curador-criador e também um aventureiro que se joga ao desconhecido com o coração aberto”.

 

Livros, vídeos, projetos à mancheia

Entre produtor, diretor artístico e curador, talvez essa terceira designação seja a que menos satisfaça ao próprio Dantas. “Na França, a gente chama de conservateur para se referir ao sujeito que cuidava das coleções dentro dos museus. Nesse sentido, eu não sou um curador, mas alguém que trabalha com os artistas para desenvolver coisas. Não tem a ver com uma determinada obra que vai ser pendurada numa parede, mas com o que vem antes”, diz.

Para exemplificar essa instância de ofício que antecede o próprio projeto, Dantas cita a coletiva Ancestral: Afro-Américas – Estados Unidos e Brasil, que estreou ano passado no Museu de Arte da Faap, e faz itinerâncias no Rio e em Belo Horizonte.

“A proposta desta exposição chegou até mim como um problema: o que a gente poderia fazer para celebrar estes 200 anos de relações entre Brasil e EUA? Falar desses irmãos, que existem em ambos os países, nas duas maiores diásporas africanas, e que nunca se reconheceram. Falar daquilo que sempre foi negligenciado. A história dessa irmandade sobre a qual a gente não pensa”.

Dantas menciona outro projeto que nasceu como uma complexa equação a ser resolvida: o Museu da Língua Portuguesa, aberto ao público em 2006. Segundo ele, o plano inicial era que fosse uma biblioteca. “Era só isso. E aí a gente foi direcionando o negócio, pois o meu lugar nesses projetos é, acima de tudo, criar linguagem”, afirma. “O museu tinha de ser uma experiência. Língua não é livro. É uma coisa que a gente usa o dia inteiro. É canto, futebol, gíria. O português é feito de 180 línguas que se mesclam aqui. E aí nasceu, na realidade, a celebração de um museu da língua. O português veio depois.” 

Na Casa Bradesco, a próxima atração comandada por Dantas é uma exposição dedicada à britânica Es Devlin, prevista para maio. A artista cria cenários para teatro, dança e ópera. Em seu currículo, estão a cerimônia de encerramento dos Jogos Olímpicos de Londres, em 2012; a abertura dos Olimpíadas do Rio, em 2016; cenografias para shows de astros como Beyoncé, Adele e, mais recentemente, Bad Bunny. “A Devlin é poderosa”, sintetiza. “Talvez seja a pessoa que construiu os espetáculos mais icônicos dos últimos anos.”

Um “curioso compulsivo”, Dantas é um leitor ávido, mas tem o hábito fragmentado pelos deslocamentos constantes. Atualmente, ele conta, o que mais lhe motiva a comprar livros são as publicações que relacionam a biologia com arte. Esse terreno, ele diz, está mal resolvido. “Foi pouco explorado dentro da história da arte, absolutamente inexplorado nos museus por medo, das pessoas, de qualquer coisa que seja viva”, argumenta. 

“O diálogo entre espécies é muito importante, entre humanos e não humanos. Toda essa malha de coisas, que transformam profundamente o mundo, é muito pouco interpretada pela arte”, pondera. “É algo que me interessa profundamente pelo poder que tem de alterar a mente humana, o estado de consciência. Também me interessam todas as possibilidades metafóricas que existem. Quando você olha para um elemento, que vive numa outra dimensão, numa outra escala, e que possui regras muito próprias, isso é algo capaz de te inspirar a entender o mundo de outra forma”. 

Um dos novos trabalhos de Dantas em curso conversa diretamente com o pensamento acima. Em Paris, o brasileiro está à frente de um projeto expositivo com o argentino Mauro Colagreco, chef do Mirazur, restaurante com três estrelas Michelin em Menton, na França. O objetivo: provar que a melhor coisa que aconteceu na humanidade foi a migração.

“E isso se prova em qualquer prato de comida”, diz. “A partir do prato se tem uma espécie de globo terrestre em que você é capaz de entender que, se não tivesse as migrações, tanto as humanas quanto as de outros animais, não haveria tampouco diversidade na gastronomia.”

Para Dantas, sem o deslocamento de um pássaro, de um lugar para o outro, ou a dispersão de sementes de um lugar para o outro, “sem toda essa inoculação, essas coisas nunca se uniriam”, afirma. Um dado tempero não valeria nada, ele sugere, caso ele não encontrasse determinada carne, certo carboidrato etc. 

“Todas essas coisas se mesclando produzem a beleza do que é a diversidade. Uma coisa que todos nós amamos quando ela se manifesta num trato. Mas que há toda uma resistência nesse momento do mundo, um movimento para tentar fronteirizar o planeta e limitar a circulação das pessoas. Sendo que, na realidade, isso é a melhor coisa que a gente fez.”

O rol de demais trabalhos em progresso é extenso: inclui a criação do Museu de Valores do Banco Central; o Museu da Música Brasileira, onde ficava o Canecão, no Rio; um museu dedicado ao sonho no Xingu e outro, ligado aos povos indígenas daquela região, em São Paulo, em colaboração com o neurocientista Sidarta Ribeiro e o arquiteto Arthur Casas; a exposição de uma coleção de carros criados por artistas, em Nova York, que em seguida circula pelo mundo.

Entre “poéticas tão distintas”, Dantas considera que boa parte de seu trabalho é de articulação. “O recurso que eu mais uso é a diplomacia”, diz. “Ser curador é observar o mundo, o público e os artistas, mas também construir uma ponte entre essas sensibilidades para que aquilo que está pulsando no coração de uma pessoa consiga se infiltrar nos das outras. As obras estão ali criando a fricção necessária para causar uma reação no público, que saia dali com o desejo de se transformar ou se mobilizar diante de qualquer coisa.”